segunda-feira, 30 de maio de 2022

POLÍTICA QUE POLITIZA: OITO DICAS DE TRABALHO DE BASE SOBRE AS ELEIÇÕES


 Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

1 – Um jovem filho de 22 anos se afogava, a mãe pulou na água para salvá-lo. Ele a amava mais do que tudo, porém, no desespero e por puro instinto, apoiou-se na mãe para se salvar. Ele se salvou, ela não. Independente da conjuntura, não haja por desespero. O medo pode até existir, mas não deve governar nem sua consciência nem suas atitudes. É preciso estar com a cabeça no lugar para reconhecer e enfrentar o inimigo.

2 – O povo não é massa de manobra. É verdade: mentira de esquerda é adubo do fascismo. Reflita junto, escute, aprenda. Hoje em dia, a floresta de “santinhos” é proporcionalmente inversa ao deserto de formação. Faça diferente, faça formação. E lembre-se: “formação” vem de forma, não de fôrma.

3 – A luta é de classes, não entre esquerda e direita. Se dois candidatos tão diferentes são bancados pelos mesmos patrões, varia o método, não o projeto. Não esconda essa verdade.

4 – A classe que comanda a economia determina as regras da política eleitoral. O capitalismo provoca a destruição da vida e faz com que estejamos todos num carro desgovernado, com a barra de direção quebrada e indo aceleradamente em direção a um profundo abismo. Dentro do carro, o melhor motorista que podemos escolher, no máximo, só pode usar a marcha para desacelerar, retardar o caimento. A salvação está fora do carro, fora das regras da política da burguesia, está na construção do Poder Popular! O voto tem sim sua importância, mas é a luta e organização do povo quem muda verdadeiramente a vida.

5 – Reconheça publicamente candidatos, partidos e parlamentares que apoiam a luta do povo. Que estão do lado das causas da classe oprimida e explorada. São camaradas que desempenham ou podem desempenhar funções importantes dentro da luta institucional. É uma tática e uma questão moral tal reconhecimento.

6 – Analise junto com o povo, critique, mas não julgue quem, de boa vontade, está tomado pela lógica eleitoral. Vivemos um período de transição, sem expressões organizativas nítidas que se apresentem como alternativa para as necessidades e a luta da classe trabalhadora. Porém, confie e procure, o novo está brotando, rompendo lentamente as entranhas das velhas formas. Sobretudo, seja você este novo.

7 – As opressões, explorações e necessidades não desaparecem porque é ano eleitoral. Apoie, participe, estimule a luta popular e suas causas antes, durante e depois das eleições.

8 – Fascistas, genocidas, bolsonaristas e aliados: #elesnão!

segunda-feira, 23 de maio de 2022

ORGANIZAÇÃO E ORGANICIDADE

 


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular (OPA).

 

            Quando não souber o que fazer, se reúna. No começo da pandemia, quando o desespero quis bater à porta da militância, nos reunimos. E olha: acho que a OPA nunca trabalhou tanto! Foi quando mais avançamos na construção do Poder Popular.

Nas reuniões, trabalhadores e trabalhadoras se encontram, mesmo com máscara e álcool gel, afinam sua viola comum, expõem seus pontos de vista, avaliam, definem planos, recarregam as esperanças. Reunião é o fundamento de toda organização.

            No Trabalho de Base, no entanto, passamos a notar uma infinidade de possibilidades antes escondidas nas entrelinhas de uma e outra tarefa formal.

            No começo da OPA, uma semana antes de alguma atividade agendada, padre Júlio e eu costumávamos passar nas comunidades informalmente. Convivíamos com as famílias, escutávamos suas percepções, suas dores e alegrias, animávamos juntos para os compromissos assumidos. Desta interação saiam muitas coisas que dificilmente apareceriam numa reunião formal. Este convívio servia para readequarmos metodologias e melhorarmos a participação em todas as dimensões.

            Sem reunião, não dá. Só em reunião, a vida não se completa. Neste sentido, é correta a frase que diz que “organicidade é mais do que organização”.

sábado, 21 de maio de 2022

JACINTA SOUSA E O INESQUECÍVEL OLHAR DE FORMIGA

 


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA

 

Em 2009, o Quilombo do Cumbe travava mais uma luta contra empresas invasoras. Desta vez, contra uma proprietária de um parque de energia eólica, que se instalava repleto de ilegalidades sobre a comunidade. Os danos causados não eram poucos: prejuízo histórico imensurável, uma vez que se fixava sobre um campo arqueológico; adoeceu a vida comunitária, causando problemas psicológicos e espirituais seríssimos; o tráfego de veículos de grande porte produzia uma poeira permanente, que provocava problemas respiratórios, principalmente em idosos e crianças; várias das moradias foram danificadas, algumas com iminente risco de desabamento; crianças, traumatizadas com os tremores do trânsito carregado, corriam a abraçar seus pais à procura de proteção. Enfim, o projeto, como de costume, feito em confortáveis escritórios da classe dominante, desconsiderou a existência de vida humana no local.

Não demorou muito, a comunidade protestou: rolou a estrada para impedir o trânsito que abastecia a obra. “Rolou”, cavou uma larga fenda de uma ponta a outra da via e fincou estacas e arames para sinalizar o descontentamento. Uma, duas, três investidas. Os bloqueios começavam pela manhã e terminavam antes do meio dia. Porém, no último, se juntaram militantes de outras organizações, e a paralização durou incríveis dezenove dias.


Eu e a companheira Jacinta Sousa fomos designados para a luta do Cumbe. Chegamos na noite do primeiro ou do segundo dia e permanecemos até o final. Outros militantes se revezaram. Quando conseguíamos dormir, o fazíamos ao lado da estrada, a uns cinco metros do “rolamento”, no alpendre simples e aconchegante de dona Auxiliadora, uma das moradoras. Não havia muro entre a casa e a estrada, de modo que estar no alpendre era praticamente o mesmo de estar no local da resistência.

Representantes da empresa e de governos de todas as esferas apareceram para convencer a comunidade a recuar, que, “com diálogo, tudo se resolveria”. Acontece que, calejadas, as famílias não mais acreditaram nas promessas e, reunidas, decidiam continuamente manter o bloqueio. “Só abriremos depois que o que queremos for atendido na prática”. Era a mais cara construção do então Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC. O aluguel de uma única máquina utilizada na obra, contam, custava diariamente 25 mil reais. A comunidade estava pressionada, e os representantes da burguesia aperreados para concluir o empreendimento.

Diante do fracasso das expedições, o prefeito municipal, um dos mais ricos empresários da região, vai à sua rádio e, numa sexta-feira, declara:

“Isso não é da vontade da comunidade. Têm uns terroristas infiltrados por lá. De hoje pode passar, mas a segunda não chegará”, não recordo com detalhe, mas as palavras foram quase estas, e o sentido, precisamente o mesmo.

            Desde o instante em que as autoridades se deram conta de que o Cumbe não estava de brincadeira, as tentativas de intimidação se tornaram constantes. Porém, não esperávamos uma ameaça tão explícita. Cismados, na boquinha da noite reunimos a equipe de segurança para montar uma estratégia de defesa. Se o prefeito não blefara, qualquer marmota mais séria poderia acontecer a partir daquela noite.

A reunião não foi fácil. Passados mais de dez dias de fechamento, o cansaço chegara e com ele certa acomodação, que nos impelia a relativizar riscos. Alguns não compareceram e outros mostravam sinais de irritabilidade. Pensamos em algumas alternativas, mas a que vingou foi manter o sistema como estava. Preocupado, cheguei para Jacinta e falei:

“Jacinta, à noite tem ficado pouca gente. Praticamente só nós, uns dois ou três militantes e a equipe de segurança, ainda assim bem desfalcada. Não seria melhor a segurança se posicionar no mato e deixarmos a estrada vazia? Dormiríamos na casa de algum morador. É um risco desnecessário a gente aqui. Vai que esse prefeito envia capangas durante a madrugada...”

            Jacinta me olhou de uma maneira que jamais esqueci e disse acolhedoramente:

            “Vá dormir na casa de alguém. Eu fico.”

            Retruquei:

            “Jacinta, não tem sentido a gente dormir aqui! Não é questão de medo ou de coragem, mas de racionalidade!”

            “Thales, vá! Você está precisando descansar. Eu fico”, e me olhou acolhedoramente de novo, já estendendo os panos para se deitar.

            “Aí é cabeça dura!”, pensei. Depois desse papo rápido, me levanto e faço uma rápida ronda com um dos companheiros da segurança e me deito. Difícil dormir. “Ô veinha teimosa!” Lá pras tantas, escuto um barulho. Me sento para ver o que é. O ruído aumenta progressivamente. Parecia uma festa. E o que vejo? Uma carrada de jovens da comunidade trazendo um bocado de apetrechos. Chegando ao local do trancamento, um cava buracos, outro acende uma fogueira... De repente, montam uma barraca no meio da estrada, armam redes, assam peixes, jogam baralho, conversam descontraidamente, se divertem, uma verdadeira festa, que anima toda companheirada e atrai mais gente. A segurança é garantida com animação e uma deliciosa fartura de bagre assado com farinha!

            Refletindo, só meses depois entendi aquele olhar de Jacinta para mim. Éramos os mais experientes naquele tipo de luta. O povo nos escutava e, pelo testemunho demonstrado, aprendera a confiar na gente. Certamente, naquela noite, dificilmente as famílias compreenderiam se, após a ameaça pela rádio, fôssemos dormir na casa de alguém, e não na estrada, como havíamos feito até ali. O medo possivelmente se instalaria e a tentativa de intimidação da parte do prefeito se tornaria força material e psicológica contra a resistência. Ele nos alvejaria sem dar um tiro! Graças a Jacinta, nossa permanência não só encorajou aqueles jovens, como fez com que tivessem a iniciativa de assumir para si a responsabilidade de proteção de toda a comunidade. Jacinta confiara sua vida ao povo, e o povo não a desapontara. Acho que seu inesquecível olhar estava me dizendo que formigas estão mais seguras, e são mais temidas, quando misturadas ao formigueiro.


 

sexta-feira, 13 de maio de 2022

A DETERMINAÇÃO MILITANTE NA INCRÍVEL JACINTA SOUSA

 

Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA

 

Tenho a graça de conviver com pessoas maravilhosas, extremamente humanas. Quem acha que Che Guevara não existe mais, que não nasceu nem nascerá outro igual... sinto informar, mas está completamente enganado. Nunca faltaram exemplos pessoais e coletivos de total entrega à causa da libertação do povo. Poderia listar aqui um milhão de episódios caseiros, que testemunhei com meus próprios olhos, vindos de pessoas com inteira abnegação individual por amor ao próximo, à justiça, à transforma
ção da sociedade. Poderia, mas por enquanto me concentrarei em uma destas experiências, oriunda da determinação militante da companheira de luta e de vida, Jacinta Sousa.

            Jacinta nasceu em Itaitinga, Ceará, filha de família camponesa. Ainda jovem, embrenhou-se de corpo e alma na luta pela terra e pela Reforma Agrária. Mulher, negra, militou na Igreja de base, no sindicato, em partidos de esquerda, no MST e ajudou a fundar a OPA. Ela é constantemente lembrada pelo infalível apito que carregava pendurado ao pescoço, sempre aposto. A zoada que fazia as vezes zangava, mas nos alertava para não descuidarmos nem da luta e nem da postura militante.

Em 2009, uma das comunidades que acompanhávamos se chamava Bernardo Marin I, que, à época, havia conquistado a terra e implementava seus créditos iniciais. A distância e a dificuldade de acesso a Bernardo I eram as maiores dentro de nosso território de atuação. Nem área de celular pegava na comunidade. Não conseguíamos conviver com as famílias com a frequência devida e há meses não comparecíamos.

Naquele fim de semana, passamos dois dias reunidos com a militância, avaliando e planejando os Trabalhos de Base. O nome da Bernardo Marin I novamente voltava à pauta, e pelo mesmo motivo: planejamento feito, Trabalho de Base não executado. Justificativas eram dadas, mas não colavam mais.

A reunião finalizara por volta das 15h de domingo. Enquanto, no meu canto, guardava caderno e caneta na mochila, Jacinta me olhou de longe e veio em minha direção.

“Tem coragem de irmos à comunidade?”, perguntou em tom desafiador.

“Qual comunidade?”

“Bernardo.”

“Lógico que tenho, companheira! Quando?”

“Agora.”

“Agora?!”, não esperava ser tão rápido.

Só sei que fomos! Devagarzinho pelas veredas da zona rural de Aracati-CE, a moto velhinha e com documentação toda atrasada. Ao chegarmos numa região conhecida por “Sabonete”, começou a chover. Não demorou nada, a motocicleta derrapou, perdi o controle e fomos ao chão. Minha perna ficou presa entre o tanque de combustível e a lama. Por alguns segundos, permaneci ali, deitado. Confesso que tive medo de olhar para trás e encontrar minha companheira num estado ruim. Não havia casas por perto, muito menos gente. Ninguém se atreveria a encarar o Sabonete em tarde de chuva, a não ser por pura necessidade.

“Se machucou?”, Jacinta, já de pé, põe a mão em meu ombro e quer saber como estou.

“Acho que não. E você?”

“Então vamos!”, e, sem me responder, começa a fazer força para reerguer a moto.

“Vamos para onde? Voltar?”

“Não. Bernardo. Ou quer desistir?”, fala comigo sem desgrudar os olhos da moto, que insiste em tirar do chão.

“Jacinta, companheira, estamos na metade do caminho, mas somente no começo do Sabonete, e com essa chuva toda... Não seria melhor tentarmos outro dia?”, realmente eu não acreditava que chegaríamos ao destino com aquele temporal.

Lembro que ela se contrapôs de uma maneira leve e camarada, de modo a me deixar à vontade, caso quisesse mesmo abortar a missão. Não recordo mais as palavras que usou, mas sei que me fizeram questionar se realmente já havia me dedicado o suficiente ao cumprimento daquela tarefa.

E assim seguimos em frente. Depois da primeira queda, caímos mais duas vezes. Em todas elas, a companheira me ajudou a levantar e a recolocar a moto de pé. Porém, à diferença do primeiro baque, não pensei mais em desistir.

Chegamos tarde da noite à comunidade. As famílias dormiam. As que se acordaram para verificar a inesperada movimentação na estrada carroçável, ao reconhecerem os dois seres enlameados, perguntaram:

“O que fazem aqui?”

            Jacinta Sousa, nesta época, tinha em torno de 55 anos de idade. Parecia bem mais. Corpo bastante debilitado pelas dificuldades que enfrentara na vida. Faltavam-lhe forças físicas suficientes para alçar a moto. Mesmo assim, antes que eu me colocasse de pé com meus trinta e um verões, lá estava ela puxando para riba a garupa da máquina.

        Obviamente, não eram seus músculos que a punham na vertical a cada tombo, mas sua determinação militante, uma força imaterial do tamanho de sua generosidade e tão densa quanto suas maciças convicções. Para mim, funcionou como um soco de Huck na ponta do queixo da acomodação.

            A Incrível Jacinta Sousa nos deixou em 22 de abril de 2015. Seu testemunho, no entanto, assim como o de Che e de tantas outras, ecoará pela eternidade dos tempos. Um estridente zumbido de apito a percorrer o infinito, convocando-nos a ir além de nós mesmos.

             

PS: Já perto da comunidade, pouco depois de ultrapassarmos o Sabonete, perdi o controle da moto mais uma vez. Por sorte, não caímos novamente; porém, durante alguns segundos ficamos totalmente à deriva, até que um verdadeiro milagre nos segurou, com o pneu dianteiro na quina de uma pequena ribanceira. “Ufa! Essa foi por pouco, né, Jacinta?” O sangue fugira completamente! A companheira estava branca e nada conseguiu pronunciar. Sim, verdadeiros heróis e heroínas são feitos de humanidade.

 

terça-feira, 10 de maio de 2022

APRENDENDO A ESCUTAR O POVO

 


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

            Militava há três anos no Movimento Sem Terra, quando fui transferido de região. Num dos primeiros Trabalhos de Base com os novos companheiros e companheiras, fui com o camarada Odahi Magalhães, então dirigente local, a uma reunião na escola do assentamento Aroeira Vilany. A reunião era para toda a comunidade, mas, diante da baixa participação – somente três pessoas compareceram –, resolvemos remarcar a atividade para uma semana depois, na casa de uma das famílias, que ficava na vila dos moradores e assim facilitaria a locomoção. No dia e hora agendados, estávamos lá, mas a reunião foi novamente adiada, isso porque só compareceram cinco pessoas, incluindo os donos da casa.

“E agora, Odahi, o que faremos?” – perguntei, sem conseguir esconder o desapontamento.

“Vamos agendar para daqui a uma semana. Enquanto isso, passaremos de casa em casa convidando o pessoal.”

E assim aconteceu, uma por uma, das 150 casas do assentamento. Chegamos à escola, local espaçoso, que avaliamos ser o mais apropriado, dado a expectativa pela quantidade de participantes. Expectativa rapidamente frustrada. Apenas seis pessoas presentes! Só que desta vez desenrolamos a reunião. Confesso que, da minha parte, em total desmotivação.

Findada a atividade, peguei o capacete e, antes de montarmos na moto, comentei meio raivoso:

“Foda, né, Odahi!? Tanto trabalho pra n...”

O comandante, apelido carinhoso do camarada, nem me escutou e falou com uma inesperada alegria:

“Você viu só?!”

“Vi o quê? A ausência do povo?”

“Não! Quer dizer, também! Mas principalmente o que eles falaram?”

E começou a listar uma série de coisas positivas que se passara na reunião. Me senti um tanto quanto decepcionado comigo mesmo. “Como não percebi tudo aquilo?” Conferia o que Odahi me relatava com a realidade... e não era que era tudo verdade! Três anos de Movimento Sem Terra, três anos de Trabalho de Base, e somente ali, com aquela partilha empolgada, entendi pela primeira vez o sentido do “saber escutar o povo”, princípio bastante lembrado nas formações do MST. Ali me dei conta que até a ausência quase que generalizada, apesar de todo esforço de mobilização que fizemos, consistia numa comunicação, numa mensagem para melhor entendermos a realidade local, as dificuldades vividas, as motivações e desmotivações das famílias, o estágio de suas e, por tabela, de nossas consciências – por que não? –. Enfim, uma oportunidade para melhorarmos metodologias e nos tornarmos militantes mais capacitados.

O povo, a classe trabalhadora, possui sua cientificidade, e, como toda ciência, sua própria linguagem. Eu ouvira tudo o que disseram na reunião, mas nada escutei. Meus ouvidos não estavam preparados para compreender a linguagem cheia de revelações que emana destes encontros.

O estetoscópio, por exemplo, é um instrumento utilizado por profissionais da saúde para auscultar órgãos internos do corpo. “Auscultar” é a palavra técnica usada para a escuta feita por pessoas que se capacitaram para isso. Se eu, como leigo na área, pego um aparelho desses e o encosto no peito de alguém, certamente ouvirei as batidas do coração, mas não entenderei nada do que ele está me dizendo. Assim é com a luta popular. O Trabalho de Base é uma escola que forma a militância para saber escutar e entender o povo. Nesta universidade, aula à distância não funciona. É preciso entrar em contato!

sexta-feira, 6 de maio de 2022

A FÓRMULA


 

Thales Emmanuel, militante da Organização Popular (OPA).

 

Um jovem e dedicado comunista pretende iniciar um Trabalho de Base junto aos trabalhadores e trabalhadoras dos Correios em sua cidade. Ele, estudante universitário, jamais atuara fora da academia e mal sabia que a categoria com a qual desejava se vincular se preparava para mais uma greve.

A luta se inicia e o militante, que vinha estudando a respeito, me liga:

“Camarada, os Correios entraram em greve.”

“Que bom! É uma excelente oportunidade de construir vínculos. E aí, vocês vão lá?”, pergunto.

“Não sei. Não me sinto preparado. Não sei o que posso fazer para contribuir. Nosso coletivo é pequeno e sem experiência”, responde-me em tom meio de desapontado.

“Irmão, você já assistiu a um filme chamado ‘Descalço sobre a terra vermelha’?", a linda história do bispo de tucum me vem à cabeça.

“Não, por quê?”

“Ele fala sobre a vida e a luta de um revolucionário chamado Pedro Casaldáliga. No final da década de 1960, o padre Pedro Casaldáliga, junto com um companheiro mais novo, Daniel, são enviados para uma missão em São Félix do Araguaia, interior de Mato Grosso. A realidade local, tomada por militares e latifundiários, é tão perversa e desumana que o amigo pensa em desistir. No filme, Daniel fala não estar preparado para aquilo. Casaldáliga se mostra bastante acolhedor e ao mesmo tempo direto: ‘Para estar preparado só precisa ter fé’. O que estou querendo dizer, camarada, é que se a gente acredita na luta dos trabalhadores, e eu sei que você acredita, não precisamos ‘temer o medo’. Basta irmos, porque o que passar disso aprenderemos fazendo.”

Nossa conversa serviu para que o jovem comunista percebesse a fé já contida em seu peito e a reconhecesse como elemento fundamental da prática militante. A mesma sensação que tive ao assistir Casaldáliga. Depois daí, ele se lançou com seus camaradas de partido pra dentro da greve, concedeu entrevista em rádio, construiu vínculos, amadureceu e continua sua militância com o empenho de sempre.

Tal como se referem ao futebol, o Trabalho de Base é uma caixinha de surpresas. É comum o friozinho na barriga, pois não existem fórmulas prontas. Toda preparação é fundamental, mas mais ajuda a preparação quando envolta pela experiência do inusitado. E, para tal propósito, “a fé não costuma faiá”.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

O QUE “SEU CAGADO” ENSINA


                       
Thales Emmanuel, militante da Organização Popular (OPA).

 

Iniciávamos um Trabalho de Base numa comunidade Sem Terra em Icapuí-CE. Ao chegar, me dirigi com um dos comunitários a um grupo de pessoas que batia um papo descontraído à sombra de um frondoso cajueiro. Havia algumas crianças. Dei um “Bom dia!”, fui apresentado e, num gesto comum, fiz um carinho na cabeça de uma das meninas, que devia ter uns seis anos de idade. Para minha surpresa, ela se esquivou, olhou-me nos olhos e, com uma inesquecível expressão de resistência, falou sem meias palavras: “Seu cagado!”

Confiança é algo que não nasce num passo de mágica. Só o tempo e o testemunho são capazes de enraizar profundas relações de companheirismo entre o povo e sua militância. Demorei um pouco a entender a reação daquela criança diante de alguém que, segundo sua própria percepção, só queria ajudar. Para compreendê-la, precisei me perguntar quantos não haviam chegado antes de mim com palavreado bonito e sorriso nos dentes, e depois se revelaram verdadeiros lobos traidores. A quantas mentiras, promessas não cumpridas, humilhações, já sobreviveram a gente mais simples de nosso povo?

Gente é gente e, depois de séculos de punhaladas pelas costas, não é difícil entender quando os mecanismos de defesa naturalmente entram em funcionamento, desde a velha e conhecida malandragem, até à verdade nua e crua contida num “Seu Cagado!”.

Para o bem ou para o mal, por pura necessidade ou outra razão que desconheço, é interessante perceber que a esperança sempre dá conta de renovar votos de confiança. Sendo assim, para nosso bem e de nosso povo, façamos da verdade de uma criança a mais inabalável das inspirações.

DEFENDER A CASA COMUM: CONSTRUIR A RETOMADA ANCESTRAL.

  Robson de Sousa Moraes (Geógrafo, Professor da UEG) robson.moraes@ueg.br     A Terra é nossa Casa Comum, um lar compartilhado ...