sexta-feira, 5 de setembro de 2025

A LEI DE VANDERLEI

 


Por Thales Emmanuel, militante da OPA


     Conheci-o numa manifestação de rua contra os agrotóxicos, na região de Limoeiro do Norte, Ceará. Estava vermelho, e não era do sol. Fora envenenado na e pela empresa do agronegócio em que trabalhava. Numa análise laboratorial, descobriu alterações não naturais em seu código genético. Segundo a pesquisadora, aquilo indicava que logo em breve Vanderlei adoeceria de câncer.

    Aquele ser humano, trabalhador rural, proibido do acesso livre à terra, jogado na fila do desemprego e, assim, forçado a se submeter às mais desumanas condições para sustentar sua família, protestava, reivindicando o direito humano de viver como um humano.

    Seu grito vibrava para além de palavras atiradas contra os agrotóxicos. Ecoava contra as cercas de uma sociedade cujo deus é o dinheiro. Como pode um país desse tamanho, ter tanta gente sem um chão para plantar e morar? Sendo que a existência de uma só pessoa sem terra deveria ser motivo mais que suficiente para tornar todas os demais seres humanos insurgentes contra o sistema que isso provoca! Como pode o trabalho, a mais potente força divina de criação, ser sinônimo de exploração, desigualdade e adoecimento? À sua maneira, Vanderlei gritava mesmo era contra a sacralização da propriedade privada!

    Eram palavras contra políticos eleitos pelo povo, mas que tramam e conspiram contra o próprio povo. Afinal de contas, o veneno tá na lei, é autorizado com a única e cínica finalidade de engordar as gordas contas bancárias de uns poucos endinheirados, traficantes modernos de gente. Os navios negreiros de outrora continuam sua saga genocida em terra firme e, tal como antes, à luz do dia. A morte matada é planejada, conhecem-se as consequências e aplicam-se de maneira dissimulada a velha fórmula das correntes e açoites. Os capitalistas sabem bem para quem destinam as doenças geradas por sua sanha de lucro. “Na mansão, o fato não sensibiliza”. Vanderlei tinha plena consciência que sua vida não se esvaía por acidente. O lucro é um crime premeditado!

     Suas palavras eram mais que palavras. Eram frases de sentimento. Sentimento de carne e osso. Dezenas de milhões de carnes e ossos iguais a ele.

    Na primeira vez, estava de corpo inteiro. Na segunda, arrancaram-lhe um dos pés. No terceiro protesto, faltava-lhe uma perna. Na quarta, onde estava? Vanderlei, amputado membro a membro por conta do câncer, não mais existia. O que restara de seu corpo jazia agora em ensurdecedor silêncio.

     Mas o que os senhores da morte não sabiam era que, esquartejado como um Tiradentes, reduzido a partes de si mesmo, Vanderlei se tornava mais que um Vanderlei. Vanderlei se multiplicava. Propagava-se como semente ao vento, e por inteiro, na carne, nos ossos e nas palavras de quem, com coragem e sentimento, tocava em frente sua teimosa e humana lei de não-desistência.

    Essa é a lei, a lei de Vanderlei! O trabalhador que lutou até o fim da vida contra a morte matada e as leis que acumpliciam assassinos não confessos recebedores de honrarias sádicas.

    Vanderlei, a lei irrevogável, a lei que não morre jamais.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

MILAGRES NOS ANDES: VIDA ENREDO DA VIDA


 

Por Thales Emmanuel, militante da OPA.



    Esses dias assisti ao filme A Sociedade das Neves, dirigido por J. A. Boyona. Lançado em 2024, ele retrata a história real de um acidente aéreo envolvendo um time amador de rúgbi, de Montevidéu, Uruguai. O avião se chocou contra uma montanha quando atravessava a Cordilheira dos Andes em direção a Santiago do Chile. Era 13 de outubro de 1972.

    Das 45 pessoas a bordo, 12 morreram no momento da colisão. Outros tantos nos dias imediatamente seguintes, decorrentes dos graves ferimentos. O frio extremo também levou algumas vidas. Fazia menos 30°C às noites. Não fosse o calor do abraço, todos teriam partido.

    Dez dias depois da queda, as operações de resgate foram interrompidas. Nunca ninguém sobrevivera nos Andes em tais condições! Nesse mesmo período, acabou a comida e os vivos começaram a se alimentar da carne dos amigos mortos. Quando a dificuldade parecia chegar ao limite máximo, eis que duas avalanches os soterram no pedaço de avião que servia de abrigo. Passaram alguns dias enterrados na neve.

    O avião caiu numa região das mais inóspitas e de difícil acesso; porém, entre uma montanha e outra, havia uma brecha, um paredão menor, que evitou a colisão frontal. Depois, apareceu um longo declive de neve sem rochas afloradas, uma espécie de escorrego natural, em ângulo quase perfeito para pousos sem asas, sem trem de pouso e com aeronave cortada ao meio. Tudo milimetricamente ajustado!

    Há milagres que simplesmente acontecem. Nestes, até o mais elaborado “por quê?” não ultrapassa a casca superficial dos fatos. Isso já é em si mesmo fascinante. Porém, o que mais chamou minha atenção foi como os sobreviventes conduziram a luta coletiva pela vida.

    O capitão do time de rúgbi, Marcelo, deu a primeira ideia: “Vamos guardar os alimentos tudo numa mala só!” E, a partir dali, a propriedade privada dos itens necessários à sobrevivência de todos foi abolida. A comunhão se tornou a base das relações materiais, que se tornou a base das relações pessoais, e vice-versa. Uma nova sociedade nasceu: A Sociedade Comunista da Neve!

    A exceção dos inaptos, todos se viravam para fazer alguma coisa. Retirar os bancos para ampliar o espaço interno, distribuir racionalmente a comida, preparar expedições no território, cuidar dos feridos, derreter o gelo para beber a água, e por aí vai.

    Na Sociedade da Neve não havia patrão nem privilegiados. Alguns se despontavam como líderes, mas seu poder não era maior do que o de ninguém. Todas as habilidades estavam a serviço da coletividade, da vida. A igualdade na Sociedade da Neve não tinha nada a ver com a supressão das diferenças individuais.

    Na Sociedade da Neve não havia morador de rua nem aluguel. Não havia esmola nem esmoléu. Nenhum filantropo rico existia por lá. E com ele se foi também a demagogia. A camaradagem não precisava de estímulos artificiais, posto que se retroalimentava da própria essência da organização social. Com o tempo, nem “obrigado” se dizia, nem favores se devia. Cada amigo era verdadeiramente um irmão. Na Sociedade da Neve não existia dinheiro. “Comprar pra quê, se já me pertence?”

    Agora imagine se não tivessem revolucionado a organização da vida, já pensou como seria? Quanto tempo duraria? Quanta desconfiança teriam uns dos outros? Quanto adoecimento mental evitável inevitariam? Quem seria o pai da indústria farmacêutica a anestesiar as dores existenciais? Onde prenderiam os que, privados de abrigo e de comida, roubariam? Quem policiaria a sociedade? Quem mandaria na polícia? Numa Sociedade Capitalista da Neve, todos se devorariam ainda em vida! Mas espera aí! Realizariam uma revolução antes do fim? Quem a realizaria?

    Após 72 dias enfrentando condições extremas, os 16 sobreviventes foram finalmente salvos. Um dos resgatistas, que precisou ficar no local até amanhecer o dia, teve medo de ser canibalizado e passou a noite em claro, numa barraca distante e separada dos demais. Ele não entendia da educação na Sociedade da Neve. De onde veio, as relações se edificam segundo princípios bem diferentes. Lá, salvar vidas é apenas uma profissão.

    Há milagres que não se explica. Decerto, há outros que, como obra conscientemente humana, são racionalizáveis. Sem estes, nenhuma sobrevivência seria possível, nem ontem nem amanhã, nem hoje; na neve ou em qualquer lugar...

 

quinta-feira, 24 de julho de 2025

PRODUÇÕES - Comunidades Dom Fragoso e Gregório Bezerra



 

Equipe de Comunicação da OPA


     Uma é formada por 23 famílias, a outra por 80. Ambas nasceram da luta, da ocupação de latifúndios improdutivos no município de Jaguaruana, Ceará. Do ponto de vista do direito burguês, a situação delas segue sem resolução. Uma sobreviveu a algumas ordens de despejo, chegando a ser invadida por um trator da carcinicultura, a criação empresarial de camarão, momento em que trabalhadoras e trabalhadores o colocaram para fora na marra. Além das ordens de despejo, a outra resistiu por seguidas semanas à ofensiva de jagunços armados e encapuzados. Fora essas questões, o que as comunidades Dom Fragoso e Gregório Bezerra têm em comum?

    Esta semana foi divulgado o levantamento da produção das duas comunidades. Na Dom Fragoso, registraram-se mais de 55 espécies diferentes, plantadas pelas famílias desde o primeiro dia da ocupação, em 01 de maio de 2021. São cereais, frutíferas, hortaliças, plantas de uso medicinal, oitenta pés de sabiá para extração de madeira.

    As famílias criam sete tipos diferentes de animais, como 403 aves de pequeno porte e 40 porcos. Todo mês, a comunidade abastece a vizinhança com aproximadamente 1000 molhos de cheiro verde, além de uma boa diversidade de outros produtos. Quem for fazer uma visita e por força do acaso adoecer da garganta, saiba que não faltará limão, eucalipto para fazer o óleo ou o chá, a romã, a hortelã, açafrão... Existem 47 pés de acerola e quase 3000 cajueiros para não deixar ninguém gripar. Ah!, há casas, elas são erguidas com madeira local, que se embelezam com lindos jardins floridos.

    A Gregório não é muito diferente. A variedade de espécies plantadas e criadas também é uma marca. Lá se colheu quase 20 toneladas de feijão este ano. Mais de 4 toneladas de melancia, mais de 5 de milho e mais de uma de melão. São oito tipos distintos de animais que as famílias criam. Como na Dom Fragoso, a comunidade Gregório Bezerra existe sem água encanada e sem energia elétrica. Ainda assim, não falta batata, macaxeira, gergelim, jerimum…

    Vale lembrar que toda essa produção ocorre em meio à luta contra as forças do latifúndio, que ainda controla parte da terra da Gregório com a presença de pessoas a ele ligadas. Organização da vida em área de conflito!

    Em relação aos venenos agrícolas, os chamados agrotóxicos, dentre as 103 famílias somadas, aproximadamente 25 usaram-nos este ano, e em plantas de ciclo curto, com aplicações pontuais. Destas 25 famílias, mais de 80% se valeram de produtos classificados pela legislação como de menor toxidade.

    Os dados que nos chegam sobre a produção nas duas comunidades são emblemáticos, sobretudo para imaginarmos como seria a vida em sociedade se não fosse a questão agrária no Brasil do jeito que é.

    Seu Cióta, por exemplo, com seus quase 80 anos, plantou e colheu pela primeira vez em sua vida sem as ordens do patrão quando passou a construir a Gregório Bezerra. Pela primeira vez não teve que entregar metade ou a terça parte do que produziu para um suposto dono da terra que nada fez. Todavia, não tivesse ele, junto com sua família e outros companheiros e companheiras, resistido à invasão jagunça, teria conseguido?

    Essas famílias camponesas agora vivem em comunidades organizadas, cuja disciplina é constituída de uma substância bem diferente daquela da época do latifúndio. Ela existe para que todas e todos estejam no mesmo patamar, com o mesmo poder de questionar, sugerir e decidir, e com igual responsabilidade em assumir o que for definido coletivamente. Esta disciplina existe para gerar participação, e não submissão.

    Isso dá medo à classe dos grandes proprietários. Obviamente que latifundiários não gostam, mas também não se aperreiam tanto com a perda de latifúndios improdutivos. Até porque o Estado os paga muito bem por eles. Sem contar que eles possuem seus mecanismos de contenção da luta dos trabalhadores. Por isso, mesmo com toda histórica e encarniçada luta camponesa, o Brasil continua nos primeiros postos dos países de maior concentração de terras do planeta.

    O que os ricos capitalistas temem é que a luta ensine, é que os trabalhadores e trabalhadoras aprendam com a participação organizada que não haverá sossego, paz e sequer futuro sem uma revolução que derrube dos tronos os opressores e eleve os humildes, através do Poder Popular.

    Como lembra o camponês e militante Luciano Gomes, morador da Comunidade de Resistência Terra Esperança, o pavor deles é que a produção de alimentos caminhe junto com a produção da consciência.


quinta-feira, 19 de junho de 2025

OCUPAÇÃO POETA COLIBRI: QUE A JUSTIÇA SEJA FEITA

 


 

Nenhum camponês sem terra

Nenhuma família sem casa

Nenhum trabalhador sem direitos

Papa Francisco

 

 

      Ontem, 18/06, houve uma audiência virtual na busca por uma solução mediada para o conflito entre o latifundiário secretário de governo e deputado estadual, Zezinho Albuquerque, e as famílias da Ocupação Poeta Colibri, localizada nas imediações do distrito de Sítio Alegre, município de Morrinhos-CE.

      Tanto o IDACE quanto a Defensoria Pública, depois de visitarem a área, apresentaram laudos técnicos divergentes daquele elaborado pelo oficial de justiça, mas é este último o que vem sendo utilizado pelo juiz Gustavo Ferreira Mainardes para justificar a ordem de despejo dada por ele contra a comunidade.

      Segundo relatos de moradores da Poeta Colibri, o oficial de justiça, nas duas vezes em que foi ao local, mostrou-se visivelmente tendencioso, ao questionar repetidamente os agricultores “por que justamente a fazenda do deputado Zezinho Albuquerque, e não outra?”

      Como se a Constituição Federal, que determina a desapropriação para fins de Reforma Agrária de latifúndios improdutivos, não valesse para o latifúndio improdutivo do deputado!

      Sem contar que quando há discordâncias do tipo, sobretudo entre departamentos do mesmo Estado, subentende-se que o mais sensato seria proceder com uma ida ao local, conhecer a realidade de perto antes de se emitir qualquer posição. Por sinal, este é o desejo sincero da comunidade, que reitera o convite para uma visita do doutor Gustavo.

      A audiência se desenrolava para a marcação da bendita inspeção técnica, quando um representante da Comissão de Conflitos Agrários, principal instância mediadora, solicitou, com absoluta razão, um prazo adequado para a execução dos trabalhos, tendo em vista que os dez dias determinados para o cumprimento da ordem de despejo já se vencem, em tese, domingo próximo.

      Para surpresa de quase todos os presentes, o juiz do caso, doutor Gustavo, fez foi revalidar o laudo suspeito do oficial de justiça como embasamento exclusivo da verdade, deixando assim a cargo da parte autora, ou seja, do latifúndio, o poder de decidir se suspenderia ou não a ordem de despejo, para que a comissão pudesse realizar a inspeção. E o latifúndio disse “não”, não suspenderia.

      É verdade que a crença em uma Justiça justa ficou ainda mais distante das consciências das famílias trabalhadoras da comunidade Poeta Colibri. Mas é fato também que a disposição de lutar até o final para que a justiça seja feita ganhou uma carga adicional de energia depois desta audiência.



Equipe de Comunicação da OPA

 
 
 





quarta-feira, 18 de junho de 2025

AMEAÇADAS DE DESPEJO, FAMÍLIAS CAMPONESAS HASTEIAM BANDEIRAS DA PALESTINA E DENUNCIAM: “O POVO PALESTINO TEM DIREITO À TERRA, E NÓS TAMBÉM. RESISTIREMOS!”

 

 
 
 

Equipe de Comunicação da Organização Popular - OPA




    Se você passar numa das estradas carroçáveis do município de Morrinhos, localizado a aproximadamente 211 km de Fortaleza, no Ceará, pode se deparar com um cenário inesperado: inúmeras bandeiras da Palestina hasteadas em frente a uma propriedade rural.

    Ali se encontram 52 famílias agricultoras sem terra, prontas para resistir a uma ação de despejo movida pelo secretário de governo e deputado estadual, Zezinho Albuquerque.

    A Ocupação Poeta Colibri, como as famílias a batizaram, nasceu em setembro de 2024, quando dezenas de trabalhadoras e trabalhadores do distrito de Sítio Alegre, no município de Morrinhos, entraram num conhecido latifúndio que há muito não cumpria com sua função social, como determina a Constituição Federal.

    As famílias nativas literalmente ocuparam a terra! Em nove meses, cultivaram uma diversidade incontável de alimentos, melhoraram as estruturas e estavam construindo suas vidas ali quando receberam uma liminar de reintegração de posse, uma ordem de despejo, emitida pelo juiz de Santana do Acaraú, Gustavo Ferreira Mainardes.


O doutor juiz precisa chegar aqui para conhecer a realidade. A terra não produzia nada há uns 20 anos. Somos famílias aqui da região, nativas. Sabemos o que estamos dizendo e também o que estamos fazendo. Temos direito a essa terra. Alguns de nós têm sim uma casinha simples na cidade. Isso não tira nosso direito, porque ninguém tem terra. Se o juiz vier, será muito bem acolhido, terá a oportunidade de conhecer nosso lugar e comer de nossa produção. Trabalhamos na terra e precisamos dela para plantar”, comentou seu Aristides, integrante da Poeta Colibri.


    Com a apreensão gerada ante a iminente repressão por parte do Estado, reunindo-se e assistindo ao que ocorre com o povo palestino, a identificação se fez inevitável:


O povo palestino é gente que não é tratado como gente, igual a nós. O povo palestino tem direito à terra e a viver como qualquer outro povo do planeta, igual a nós. O governo de Israel está querendo tirar eles do mapa. O deputado e o juiz estão querendo fazer a mesma coisa com a gente. Por isso fincamos essa ruma de bandeira da Palestina, porque nós somos a Palestina e a Palestina somos nós. É pela vida. Nós lutamos pela vida!”, continuou seu Aristides.

 

    O deputado Zezinho Albuquerque apresentou documentos que comprovariam a propriedade de apenas uma pequena parcela do latifúndio abandonado.

    O magistrado Gustavo Ferreira Mainardes não considerou o índice de produtividade, necessário ao cumprimento da função social da terra. Decretou o despejo justificando que os trabalhadores possuem casa e concedeu dez dias para que as famílias saiam com seus pertences, incluindo a colheita do que for possível, sob pena do uso da violência.

    Pessoas, comunidades e entidades, a par da injustiça flagrante, somam-se à luta e afirmam estar dispostas a resistir até o final com a Poeta Colibri.

    A comunidade cobra dos governos uma inspeção técnica da área e convida, muito respeitosamente, o juiz para uma visita, para que emita seu parecer depois de conhecer com os próprios olhos a realidade. Além de resistir, tal e qual o povo palestino, no direito de existir.


 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

O QUE FAZER COM A BESTA DE CINCO CABEÇAS


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular - OPA

Quando criança, ela olhava com admiração e entusiasmo o avião que fazia chover gotas coloridas de arco-íris sobre sua casa, numa comunidade de camponeses sem terra no sertão cearense. Hoje, adulta, discursa com orgulho para outros trabalhadores sobre os males provocados pelos agrotóxicos, em especial aqueles lançados do alto, por aviões ou drones.
     
   Ela estava na luta no momento em que aproximadamente cinquenta capangas encapuzados e armados invadiram a comunidade Gregório Bezerra, em Jaguaruana-CE. Eram 2:30 da madrugada. Todos dormiam.

Em meio a xingamentos e ameaças, ela escutou quando um companheiro, percebendo entre os capangas três ou quatro jagunços profissionais, matadores de gente, mas tendo os demais todas as características de seguranças de festa, começou a falar:

“Dá pra ver que vocês são trabalhadores, filhos de trabalhadores. Devem morar na capital, nas periferias de Fortaleza.”

“Sim, somos de lá! E daí?”, retrucou raivosamente um encapuzado.

“Nós também somos trabalhadores. Estamos lutando pela terra, para não precisarmos ir para as cidades, como seus avós foram no passado. Tenho certeza que suas famílias vieram do interior para a capital. Se perguntem de onde são, de onde vieram suas famílias!”

“Cale a boca! Vocês não passam de uns vagabundos que invadem o que é dos out..”

“Deixe ele falar! Deixe ele terminar de falar!”, os jovens recrutados para o trabalho sujo de jagunço entram em divergência.

“Nós temos direito a essa terra! Mas a lei não é cumprida quando é para favorecer os pobres. Vocês talvez não saibam, mas são vocês que estão cometendo um crime. Seu patrão entende muito bem disso e, se der errado, ele se livra e o B.O. cai pra cima de quem? De vocês, é claro! Prestem atenção: seus avós foram expulsos no passado pelos mesmos empresários e fazendeiros que agora pagam vocês para nos expulsar! Os ricos nos usam, jogam a gente uns contra os outros para poderem nos dominar. Vocês precisam do dinheiro deles para sobreviver porque os avós deles expulsaram seus avós lá atrás.”

O tempo passou lentamente, até o dia raiar e a intensidade do conflito se dirimir na medida do possível. A falta de preparação dos seguranças de festa seria a justificativa perfeita para “isentar” o fazendeiro das mortes que, por puro milagre, não aconteceram. Com a situação relativamente estabilizada, os jagunços profissionais sumiram de cena sem deixar rastros.

A fazenda ocupada pelos trabalhadores era a mesma que pulverizava agrotóxico de avião na cabeça das pessoas antigamente. Entre as mulheres trabalhadoras que resistiram à invasão jagunça, muitas corriam atrás da aeronave fazedora da chuva mal cheirosa quando crianças.

Latifúndio não se separa de veneno, que não se separa de violência. O que chamamos de agronegócio se constitui à base da junção de cinco elementos principais: a grande propriedade da terra, a mídia, os bancos, o Estado e a indústria capitalista; esta última, a que produz os agroquímicos e suas aeronaves de lançamento.

O Estado, financiado pelos cofres públicos, isenta essas empresas de impostos, constrói e cede infraestruturas para sua instalação e bom funcionamento (terras, canais, portos, estradas, trabalhadores etc), reembolsa bancos quando o latifúndio não paga suas contas, reprime comunidades ou faz vista grossa quando a repressão parte de um ente privado. O Estado cria leis que favorecem e ampliam o consumo das mercadorias despejadas pela indústria capitalista, ainda que estas adoeçam e matem a população, como a lei que autoriza a pulverização aérea por drones no Ceará ou ainda a “mãe das boiadas”, em tramitação no Congresso Nacional, que elimina a necessidade de licenças ambientais para os projetos capitalistas.

A besta demoníaca de cinco cabeças existe. Ela devora pessoas cotidianamente. O sangue que circula em suas veias não é dela. Pertence aos povos nativos, às senzalas e quilombos, ele é sugado sem anestesia das favelas, da juventude, dos trabalhadores assassinados por protestarem contra suas maldades, é o sangue das mães que amamentam seus bebês com o peito carregado de agrotóxicos, dos mortos por câncer, dos suicidados pela depressão, do filho que nasce doente e perdura pela vida inteira com sequelas.

Cada terra retomada, cada lei maldita derrubada pela pressão popular faz tremer o monstro, que não cai e, via de regra, ressurge mais poderoso a cada baque. Ainda que não o derrotem de imediato e por completo, essas ações nos servem de aprendizado e preparação. As batalhas nos ensinam a afiar a lança, cujo tiro mortal deverá ser desferido sem piedade no meio do peito da criatura.

O líquido que circula na besta é o sangue de uma larguíssima parcela da humanidade que precisa decidir o que fará de si mesma, se sucumbe conformada ou se luta para vencer.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

ARGUMENTOS ENVENENADOS E O ANTÍDOTO - CHUVA DE VENENO NUNCA MAIS!


 

Camilo da Mata, militante da Organização Popular - OPA

 

O governador do Ceará, Elmano de Freitas, tem repetido insistentemente que o consumo de agrotóxico no estado aumentou após a criação da Lei Zé Maria do Tomé, aprovada em 2019 e que proibia a pulverização aérea de agrotóxicos. A valer, o que o chefe do executivo estadual faz é insinuar nas entrelinhas que de nada importa ou mesmo que a culpa pelo aumento do consumo do químico empresarial no estado decorre da proibição da chuva de veneno. Um argumento, esse sim igualmente envenenado, cujo objetivo é justificar uma lei criminosa, a que autoriza a pulverização por drones, sancionada por ele e mais 22 deputados em dezembro de 2024.

O consumo de agrotóxico realmente subiu depois que a Lei Zé Maria do Tomé entrou em vigor, mas não foi por causa dela. Aliás, ele subiu antes, durante e depois da lei. Subiu apesar da lei! O porquê isso ocorre veremos agora.

O fato das políticas governamentais estarem em total consonância com a lógica do agronegócio é o principal fator do crescente e constante consumo de agrotóxico. É a lógica para a qual governam e legislam a maioria dos parlamentares. A empresa quer lucro, e quanto mais vende, mais lucro obtém, independente das consequências. A empresa que produz veneno quer vender mais veneno, e vende mais quanto mais largas são as facilidades.

Assim sendo, o Plano Safra 2024-2025, do Governo Federal, que destina quase 500 bilhões de reais de dinheiro dos cofres públicos para o agronegócio, tornou-se o maior da história do Brasil. Sem contar toda infraestrutura, água e terras fartas que são disponibilizadas pelo Estado para as grandes empresas do ramo. No Ceará, o agrotóxico paga zero por cento de imposto para circular! É como um assassino que se movimenta livremente fazendo suas maldades à luz do dia, sem ser incomodado pela força da lei, ou pior, sendo respaldado por ela.

Por falar em assassino, o que mandou matar Zé Maria do Tomé segue soltinho da Silva, recebendo facilidades e honrarias. Zé Maria foi assassinado com mais de 20 tiros pelas costas quando protestava contra a pulverização aérea de veneno e denunciava o roubo das terras da Chapada do Apodi por parte das empresas.

De 1990 a 2021, foram despejados 1.300% a mais de agrotóxicos no ambiente e nos corpos brasileiros. Agora, imagina o que seria de nós sem os cinco anos em que a pulverização aérea esteve proibida no Ceará!

Difícil acreditar que alguém pode insinuar seriamente que a proibição da pulverização aérea faz aumentar o uso de veneno ou que não tem a menor importância. Ora, o que é melhor para uma empresa multinacional que lucra com a morte: ter liberadas dez maneiras diferentes de envenenar, ou contar apenas com metade delas, tendo as outras cinco proibidas?

Dos 10 agrotóxicos mais vendidos no Brasil, cinco estão banidos da União Europeia. O que interessa mais a uma empresa que produz agrotóxicos: ter todos os seus produtos liberados para a comercialização ou somente parte deles?

O consumo de veneno cresce porque governadores e parlamentares, com raras e honradas exceções, eleitos pelo povo, governam e legislam contra o povo, ainda que isso os torne uns fora-da-lei. Não é difícil entender: se a lei Zé Maria do Tomé proíbe a pulverização aérea de agrotóxico, é de se supor que nem de bolinha de papel arremessada ao ar o veneno poderia ser lançado. Ou seja, a lei que autoriza a pulverização aérea por drones é uma lei fora-da-lei, já que, em tese, a lei Zé Maria do Tomé continua em vigor.

A propósito, na Europa, a pulverização aérea é proibida, seja de avião, drone ou disco voador. Das duas, uma: ou o povo brasileiro é uma espécie mutante com superpoderes que nos tornam imunes ao veneno; ou, se faz mal lá, faz mal aqui também.

Outra justificativa utilizada pelo governador é a de que os drones protegeriam o trabalhador, já que este não precisaria manusear diretamente o produto tóxico. Como não?! Por acaso é o empresário quem abastece o drone? É ele quem controla a máquina ou mora nas imediações de onde está chovendo veneno? O que se diz mesmo é que os grandes homens de negócio sequer se alimentam do que seus trabalhadores produzem. Preferem o natural ao plástico. Eles sabem bem o mal que fazem.

Esse argumento do governador, tão envenenado quanto o primeiro, assemelha-se bastante aquele que se tornou corriqueiro escutar nos últimos tempos, de que política pública de segurança é armar o “cidadão de bem”. “Se você tem dinheiro, nós o licenciamos para que se arme, com pistola, fuzil ou drone.”

Os trabalhadores não querem ter que escolher entre morrer com tiro de pistola ou de fuzil. Os trabalhadores e trabalhadoras não querem ser envenenados é de jeito nenhum! O que precisam e almejam são políticas públicas que lhes proporcionem condições de vida digna.

Até porque não confundamos Política Pública, aquela que deveria existir em benefício de toda a população, a começar por quem mais precisa, com trabalhar para a indústria das armas ou para a indústria do veneno, que, diga-se de passagem, são uma coisa só. A Monsanto, por exemplo, uma das gigantes do agronegócio, é responsável pela produção de munições de fósforo branco, utilizadas pelo Estado de Israel contra os palestinos. Quando a Política é verdadeiramente Pública, ela enfrenta aquilo que faz mal ao público, e não o favorece.

E como os drones da morte fazem mal! Como é amplamente denunciado pelas mídias populares, no Brasil, eles são empregados até mesmo como armas de guerra, despejando veneno contra comunidades no intuito de expulsá-las. Inclusive, enquanto escrevo estas linhas, chegam-me vídeos de vários locais do Ceará apresentando a devastação que o veneno aplicado por drones provoca nas comunidades do entorno (acesse pelo insta: @movimento_revogaja).

O agronegócio quer todas as terras para ele. Como destrói tudo que encontra pela frente, precisa sempre de mais terras novas, de mais florestas para devorar. A expansão geográfica da soja que o diga! Triplicou nas últimas três décadas, enquanto a desapropriação de latifúndios para fins de Reforma Agrária praticamente zerou. O avanço de um modelo representa necessariamente o recuo do outro.

A pulverização aérea é tão indefensável, que nem em termos de mira dá para se argumentar. Pesquisas da EMBRAPA demonstram que apenas 32% do veneno lançado ao ar atingem o alvo, e os 68% restantes podem alcançar até 32 km de distância.

Nas comunidades da Chapada do Apodi, especialmente em Quixeré, Limoeiro e Tabuleiro do Norte, tão logo se aprovou a lei fora-da-lei, a catinga de veneno tomou conta do ar. As mães não têm mais sossego: “Moro numa das últimas casas da comunidade e não consigo respirar direito com o mau cheiro. Não tenho mais paz. Passo o dia preocupada com meu filho que está na escola.” A escola fica bem perto de onde estão os drones.

À beira da revolta, mulheres da comunidade fazem um convite anti-Óleo-de-Peroba: “Governador e deputados que aprovaram a lei dos drones, venham morar uns dias com a gente. Os senhores e suas famílias. Venham comer de nossa comida, beber de nossa água, respirar de nosso ar. Seus filhos estudarão em nossas escolas. Venham! Serão bem acolhidos.”

Como diz a canção: “Quem tá perto sofre mais, mas quem tá longe a morte vai atrás”. No Brasil, são quase um milhão de novos casos de câncer a cada três anos. A doença se alastra no campo e na cidade.

Para finalizar: Se o governador realmente se preocupa com a saúde do trabalhador, deve escutá-lo antes de qualquer coisa. Uma excelente oportunidade é considerar o resultado das dezenas de milhares de votos do Plebiscito Popular Contra a Chuva de Veneno, fazer as pazes com seu passado de advogado dos Sem Terra e revogar a maldita lei fora-da-lei que ajudou a criar. O povo saberá reconhecer.

Do contrário, não tenhamos dúvida: estará matando novamente Zé Maria e sendo cúmplice dos adoecimentos e mortes que seguirão aumentando com o crescimento do agronegócio. Sem contar que ir contra a vontade soberana e consciente do povo é algo completamente inútil, pois só servirá para ampliar a indignação e a revolta dos que sofrem.

Enfim: se tem veneno, tem antídoto.



 

A LEI DE VANDERLEI

  Por Thales Emmanuel, militante da OPA       Conheci-o numa manifestação de rua contra os agrotóxicos, na região de Limoeiro do Norte, Cear...