quarta-feira, 28 de maio de 2025

O QUE FAZER COM A BESTA DE CINCO CABEÇAS


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular - OPA

Quando criança, ela olhava com admiração e entusiasmo o avião que fazia chover gotas coloridas de arco-íris sobre sua casa, numa comunidade de camponeses sem terra no sertão cearense. Hoje, adulta, discursa com orgulho para outros trabalhadores sobre os males provocados pelos agrotóxicos, em especial aqueles lançados do alto, por aviões ou drones.
     
   Ela estava na luta no momento em que aproximadamente cinquenta capangas encapuzados e armados invadiram a comunidade Gregório Bezerra, em Jaguaruana-CE. Eram 2:30 da madrugada. Todos dormiam.

Em meio a xingamentos e ameaças, ela escutou quando um companheiro, percebendo entre os capangas três ou quatro jagunços profissionais, matadores de gente, mas tendo os demais todas as características de seguranças de festa, começou a falar:

“Dá pra ver que vocês são trabalhadores, filhos de trabalhadores. Devem morar na capital, nas periferias de Fortaleza.”

“Sim, somos de lá! E daí?”, retrucou raivosamente um encapuzado.

“Nós também somos trabalhadores. Estamos lutando pela terra, para não precisarmos ir para as cidades, como seus avós foram no passado. Tenho certeza que suas famílias vieram do interior para a capital. Se perguntem de onde são, de onde vieram suas famílias!”

“Cale a boca! Vocês não passam de uns vagabundos que invadem o que é dos out..”

“Deixe ele falar! Deixe ele terminar de falar!”, os jovens recrutados para o trabalho sujo de jagunço entram em divergência.

“Nós temos direito a essa terra! Mas a lei não é cumprida quando é para favorecer os pobres. Vocês talvez não saibam, mas são vocês que estão cometendo um crime. Seu patrão entende muito bem disso e, se der errado, ele se livra e o B.O. cai pra cima de quem? De vocês, é claro! Prestem atenção: seus avós foram expulsos no passado pelos mesmos empresários e fazendeiros que agora pagam vocês para nos expulsar! Os ricos nos usam, jogam a gente uns contra os outros para poderem nos dominar. Vocês precisam do dinheiro deles para sobreviver porque os avós deles expulsaram seus avós lá atrás.”

O tempo passou lentamente, até o dia raiar e a intensidade do conflito se dirimir na medida do possível. A falta de preparação dos seguranças de festa seria a justificativa perfeita para “isentar” o fazendeiro das mortes que, por puro milagre, não aconteceram. Com a situação relativamente estabilizada, os jagunços profissionais sumiram de cena sem deixar rastros.

A fazenda ocupada pelos trabalhadores era a mesma que pulverizava agrotóxico de avião na cabeça das pessoas antigamente. Entre as mulheres trabalhadoras que resistiram à invasão jagunça, muitas corriam atrás da aeronave fazedora da chuva mal cheirosa quando crianças.

Latifúndio não se separa de veneno, que não se separa de violência. O que chamamos de agronegócio se constitui à base da junção de cinco elementos principais: a grande propriedade da terra, a mídia, os bancos, o Estado e a indústria capitalista; esta última, a que produz os agroquímicos e suas aeronaves de lançamento.

O Estado, financiado pelos cofres públicos, isenta essas empresas de impostos, constrói e cede infraestruturas para sua instalação e bom funcionamento (terras, canais, portos, estradas, trabalhadores etc), reembolsa bancos quando o latifúndio não paga suas contas, reprime comunidades ou faz vista grossa quando a repressão parte de um ente privado. O Estado cria leis que favorecem e ampliam o consumo das mercadorias despejadas pela indústria capitalista, ainda que estas adoeçam e matem a população, como a lei que autoriza a pulverização aérea por drones no Ceará ou ainda a “mãe das boiadas”, em tramitação no Congresso Nacional, que elimina a necessidade de licenças ambientais para os projetos capitalistas.

A besta demoníaca de cinco cabeças existe. Ela devora pessoas cotidianamente. O sangue que circula em suas veias não é dela. Pertence aos povos nativos, às senzalas e quilombos, ele é sugado sem anestesia das favelas, da juventude, dos trabalhadores assassinados por protestarem contra suas maldades, é o sangue das mães que amamentam seus bebês com o peito carregado de agrotóxicos, dos mortos por câncer, dos suicidados pela depressão, do filho que nasce doente e perdura pela vida inteira com sequelas.

Cada terra retomada, cada lei maldita derrubada pela pressão popular faz tremer o monstro, que não cai e, via de regra, ressurge mais poderoso a cada baque. Ainda que não o derrotem de imediato e por completo, essas ações nos servem de aprendizado e preparação. As batalhas nos ensinam a afiar a lança, cujo tiro mortal deverá ser desferido sem piedade no meio do peito da criatura.

O líquido que circula na besta é o sangue de uma larguíssima parcela da humanidade que precisa decidir o que fará de si mesma, se sucumbe conformada ou se luta para vencer.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

ARGUMENTOS ENVENENADOS E O ANTÍDOTO - CHUVA DE VENENO NUNCA MAIS!


 

Camilo da Mata, militante da Organização Popular - OPA

 

O governador do Ceará, Elmano de Freitas, tem repetido insistentemente que o consumo de agrotóxico no estado aumentou após a criação da Lei Zé Maria do Tomé, aprovada em 2019 e que proibia a pulverização aérea de agrotóxicos. A valer, o que o chefe do executivo estadual faz é insinuar nas entrelinhas que de nada importa ou mesmo que a culpa pelo aumento do consumo do químico empresarial no estado decorre da proibição da chuva de veneno. Um argumento, esse sim igualmente envenenado, cujo objetivo é justificar uma lei criminosa, a que autoriza a pulverização por drones, sancionada por ele e mais 22 deputados em dezembro de 2024.

O consumo de agrotóxico realmente subiu depois que a Lei Zé Maria do Tomé entrou em vigor, mas não foi por causa dela. Aliás, ele subiu antes, durante e depois da lei. Subiu apesar da lei! O porquê isso ocorre veremos agora.

O fato das políticas governamentais estarem em total consonância com a lógica do agronegócio é o principal fator do crescente e constante consumo de agrotóxico. É a lógica para a qual governam e legislam a maioria dos parlamentares. A empresa quer lucro, e quanto mais vende, mais lucro obtém, independente das consequências. A empresa que produz veneno quer vender mais veneno, e vende mais quanto mais largas são as facilidades.

Assim sendo, o Plano Safra 2024-2025, do Governo Federal, que destina quase 500 bilhões de reais de dinheiro dos cofres públicos para o agronegócio, tornou-se o maior da história do Brasil. Sem contar toda infraestrutura, água e terras fartas que são disponibilizadas pelo Estado para as grandes empresas do ramo. No Ceará, o agrotóxico paga zero por cento de imposto para circular! É como um assassino que se movimenta livremente fazendo suas maldades à luz do dia, sem ser incomodado pela força da lei, ou pior, sendo respaldado por ela.

Por falar em assassino, o que mandou matar Zé Maria do Tomé segue soltinho da Silva, recebendo facilidades e honrarias. Zé Maria foi assassinado com mais de 20 tiros pelas costas quando protestava contra a pulverização aérea de veneno e denunciava o roubo das terras da Chapada do Apodi por parte das empresas.

De 1990 a 2021, foram despejados 1.300% a mais de agrotóxicos no ambiente e nos corpos brasileiros. Agora, imagina o que seria de nós sem os cinco anos em que a pulverização aérea esteve proibida no Ceará!

Difícil acreditar que alguém pode insinuar seriamente que a proibição da pulverização aérea faz aumentar o uso de veneno ou que não tem a menor importância. Ora, o que é melhor para uma empresa multinacional que lucra com a morte: ter liberadas dez maneiras diferentes de envenenar, ou contar apenas com metade delas, tendo as outras cinco proibidas?

Dos 10 agrotóxicos mais vendidos no Brasil, cinco estão banidos da União Europeia. O que interessa mais a uma empresa que produz agrotóxicos: ter todos os seus produtos liberados para a comercialização ou somente parte deles?

O consumo de veneno cresce porque governadores e parlamentares, com raras e honradas exceções, eleitos pelo povo, governam e legislam contra o povo, ainda que isso os torne uns fora-da-lei. Não é difícil entender: se a lei Zé Maria do Tomé proíbe a pulverização aérea de agrotóxico, é de se supor que nem de bolinha de papel arremessada ao ar o veneno poderia ser lançado. Ou seja, a lei que autoriza a pulverização aérea por drones é uma lei fora-da-lei, já que, em tese, a lei Zé Maria do Tomé continua em vigor.

A propósito, na Europa, a pulverização aérea é proibida, seja de avião, drone ou disco voador. Das duas, uma: ou o povo brasileiro é uma espécie mutante com superpoderes que nos tornam imunes ao veneno; ou, se faz mal lá, faz mal aqui também.

Outra justificativa utilizada pelo governador é a de que os drones protegeriam o trabalhador, já que este não precisaria manusear diretamente o produto tóxico. Como não?! Por acaso é o empresário quem abastece o drone? É ele quem controla a máquina ou mora nas imediações de onde está chovendo veneno? O que se diz mesmo é que os grandes homens de negócio sequer se alimentam do que seus trabalhadores produzem. Preferem o natural ao plástico. Eles sabem bem o mal que fazem.

Esse argumento do governador, tão envenenado quanto o primeiro, assemelha-se bastante aquele que se tornou corriqueiro escutar nos últimos tempos, de que política pública de segurança é armar o “cidadão de bem”. “Se você tem dinheiro, nós o licenciamos para que se arme, com pistola, fuzil ou drone.”

Os trabalhadores não querem ter que escolher entre morrer com tiro de pistola ou de fuzil. Os trabalhadores e trabalhadoras não querem ser envenenados é de jeito nenhum! O que precisam e almejam são políticas públicas que lhes proporcionem condições de vida digna.

Até porque não confundamos Política Pública, aquela que deveria existir em benefício de toda a população, a começar por quem mais precisa, com trabalhar para a indústria das armas ou para a indústria do veneno, que, diga-se de passagem, são uma coisa só. A Monsanto, por exemplo, uma das gigantes do agronegócio, é responsável pela produção de munições de fósforo branco, utilizadas pelo Estado de Israel contra os palestinos. Quando a Política é verdadeiramente Pública, ela enfrenta aquilo que faz mal ao público, e não o favorece.

E como os drones da morte fazem mal! Como é amplamente denunciado pelas mídias populares, no Brasil, eles são empregados até mesmo como armas de guerra, despejando veneno contra comunidades no intuito de expulsá-las. Inclusive, enquanto escrevo estas linhas, chegam-me vídeos de vários locais do Ceará apresentando a devastação que o veneno aplicado por drones provoca nas comunidades do entorno (acesse pelo insta: @movimento_revogaja).

O agronegócio quer todas as terras para ele. Como destrói tudo que encontra pela frente, precisa sempre de mais terras novas, de mais florestas para devorar. A expansão geográfica da soja que o diga! Triplicou nas últimas três décadas, enquanto a desapropriação de latifúndios para fins de Reforma Agrária praticamente zerou. O avanço de um modelo representa necessariamente o recuo do outro.

A pulverização aérea é tão indefensável, que nem em termos de mira dá para se argumentar. Pesquisas da EMBRAPA demonstram que apenas 32% do veneno lançado ao ar atingem o alvo, e os 68% restantes podem alcançar até 32 km de distância.

Nas comunidades da Chapada do Apodi, especialmente em Quixeré, Limoeiro e Tabuleiro do Norte, tão logo se aprovou a lei fora-da-lei, a catinga de veneno tomou conta do ar. As mães não têm mais sossego: “Moro numa das últimas casas da comunidade e não consigo respirar direito com o mau cheiro. Não tenho mais paz. Passo o dia preocupada com meu filho que está na escola.” A escola fica bem perto de onde estão os drones.

À beira da revolta, mulheres da comunidade fazem um convite anti-Óleo-de-Peroba: “Governador e deputados que aprovaram a lei dos drones, venham morar uns dias com a gente. Os senhores e suas famílias. Venham comer de nossa comida, beber de nossa água, respirar de nosso ar. Seus filhos estudarão em nossas escolas. Venham! Serão bem acolhidos.”

Como diz a canção: “Quem tá perto sofre mais, mas quem tá longe a morte vai atrás”. No Brasil, são quase um milhão de novos casos de câncer a cada três anos. A doença se alastra no campo e na cidade.

Para finalizar: Se o governador realmente se preocupa com a saúde do trabalhador, deve escutá-lo antes de qualquer coisa. Uma excelente oportunidade é considerar o resultado das dezenas de milhares de votos do Plebiscito Popular Contra a Chuva de Veneno, fazer as pazes com seu passado de advogado dos Sem Terra e revogar a maldita lei fora-da-lei que ajudou a criar. O povo saberá reconhecer.

Do contrário, não tenhamos dúvida: estará matando novamente Zé Maria e sendo cúmplice dos adoecimentos e mortes que seguirão aumentando com o crescimento do agronegócio. Sem contar que ir contra a vontade soberana e consciente do povo é algo completamente inútil, pois só servirá para ampliar a indignação e a revolta dos que sofrem.

Enfim: se tem veneno, tem antídoto.



 

OCUPAÇÃO POETA COLIBRI: QUE A JUSTIÇA SEJA FEITA

      Nenhum camponês sem terra Nenhuma família sem casa Nenhum trabalhador sem direitos Papa Francisco           Ontem, 18/06, hou...