Thales Emmanuel,
militante da Organização Popular – OPA
Tenho a graça de
conviver com pessoas maravilhosas, extremamente humanas. Quem acha que Che
Guevara não existe mais, que não nasceu nem nascerá outro igual... sinto
informar, mas está completamente enganado. Nunca faltaram exemplos pessoais e
coletivos de total entrega à causa da libertação do povo. Poderia listar aqui
um milhão de episódios caseiros, que testemunhei com meus próprios olhos, vindos
de pessoas com inteira abnegação individual por amor ao próximo, à justiça, à
transforma
ção da sociedade. Poderia, mas por enquanto me concentrarei em uma
destas experiências, oriunda da determinação militante da companheira de luta e
de vida, Jacinta Sousa.
Jacinta
nasceu em Itaitinga, Ceará, filha de família camponesa. Ainda jovem, embrenhou-se
de corpo e alma na luta pela terra e pela Reforma Agrária. Mulher, negra, militou
na Igreja de base, no sindicato, em partidos de esquerda, no MST e ajudou a
fundar a OPA. Ela é constantemente lembrada pelo infalível apito que carregava
pendurado ao pescoço, sempre aposto. A zoada que fazia as vezes zangava, mas nos
alertava para não descuidarmos nem da luta e nem da postura militante.
Em 2009, uma das
comunidades que acompanhávamos se chamava Bernardo Marin I, que, à época, havia
conquistado a terra e implementava seus créditos iniciais. A distância e a
dificuldade de acesso a Bernardo I eram as maiores dentro de nosso território
de atuação. Nem área de celular pegava na comunidade. Não conseguíamos conviver
com as famílias com a frequência devida e há meses não comparecíamos.
Naquele fim de semana,
passamos dois dias reunidos com a militância, avaliando e planejando os
Trabalhos de Base. O nome da Bernardo Marin I novamente voltava à pauta, e pelo
mesmo motivo: planejamento feito, Trabalho de Base não executado.
Justificativas eram dadas, mas não colavam mais.
A reunião finalizara
por volta das 15h de domingo. Enquanto, no meu canto, guardava caderno e caneta
na mochila, Jacinta me olhou de longe e veio em minha direção.
“Tem coragem de irmos à
comunidade?”, perguntou em tom desafiador.
“Qual comunidade?”
“Bernardo.”
“Lógico que tenho,
companheira! Quando?”
“Agora.”
“Agora?!”, não esperava
ser tão rápido.
Só sei que fomos!
Devagarzinho pelas veredas da zona rural de Aracati-CE, a moto velhinha e com
documentação toda atrasada. Ao chegarmos numa região conhecida por “Sabonete”,
começou a chover. Não demorou nada, a motocicleta derrapou, perdi o controle e
fomos ao chão. Minha perna ficou presa entre o tanque de combustível e a lama.
Por alguns segundos, permaneci ali, deitado. Confesso que tive medo de olhar
para trás e encontrar minha companheira num estado ruim. Não havia casas por
perto, muito menos gente. Ninguém se atreveria a encarar o Sabonete em tarde de
chuva, a não ser por pura necessidade.
“Se machucou?”,
Jacinta, já de pé, põe a mão em meu ombro e quer saber como estou.
“Acho que não. E você?”
“Então vamos!”, e, sem
me responder, começa a fazer força para reerguer a moto.
“Vamos para onde?
Voltar?”
“Não. Bernardo. Ou quer
desistir?”, fala comigo sem desgrudar os olhos da moto, que insiste em tirar do
chão.
“Jacinta, companheira,
estamos na metade do caminho, mas somente no começo do Sabonete, e com essa
chuva toda... Não seria melhor tentarmos outro dia?”, realmente eu não
acreditava que chegaríamos ao destino com aquele temporal.
Lembro que ela se
contrapôs de uma maneira leve e camarada, de modo a me deixar à vontade, caso
quisesse mesmo abortar a missão. Não recordo mais as palavras que usou, mas sei
que me fizeram questionar se realmente já havia me dedicado o suficiente ao
cumprimento daquela tarefa.
E assim seguimos em
frente. Depois da primeira queda, caímos mais duas vezes. Em todas elas, a
companheira me ajudou a levantar e a recolocar a moto de pé. Porém, à diferença
do primeiro baque, não pensei mais em desistir.
Chegamos tarde da noite
à comunidade. As famílias dormiam. As que se acordaram para verificar a inesperada
movimentação na estrada carroçável, ao reconhecerem os dois seres enlameados, perguntaram:
“O que fazem aqui?”
Jacinta
Sousa, nesta época, tinha em torno de 55 anos de idade. Parecia bem mais. Corpo
bastante debilitado pelas dificuldades que enfrentara na vida. Faltavam-lhe forças
físicas suficientes para alçar a moto. Mesmo assim, antes que eu me colocasse
de pé com meus trinta e um verões, lá estava ela puxando para riba a garupa da
máquina.
Obviamente,
não eram seus músculos que a punham na vertical a cada tombo, mas sua determinação
militante, uma força imaterial do tamanho de sua generosidade e tão densa
quanto suas maciças convicções. Para mim, funcionou como um soco de Huck na ponta
do queixo da acomodação.
A
Incrível Jacinta Sousa nos deixou em 22 de abril de 2015. Seu testemunho, no
entanto, assim como o de Che e de tantas outras, ecoará pela eternidade dos
tempos. Um estridente zumbido de apito a percorrer o infinito, convocando-nos a
ir além de nós mesmos.
PS: Já perto da comunidade, pouco depois de ultrapassarmos o Sabonete, perdi o controle da moto mais uma vez. Por sorte, não caímos novamente; porém, durante alguns segundos ficamos totalmente à deriva, até que um verdadeiro milagre nos segurou, com o pneu dianteiro na quina de uma pequena ribanceira. “Ufa! Essa foi por pouco, né, Jacinta?” O sangue fugira completamente! A companheira estava branca e nada conseguiu pronunciar. Sim, verdadeiros heróis e heroínas são feitos de humanidade.
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