Por
Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA
A
fazenda que pretendíamos ocupar estava abandonada há anos. O grupo proprietário,
muito rico, priorizava outros investimentos e ali só especulava. Ainda assim,
entrar naquela terra mexia nas entranhas das famílias agricultoras. Mesmo entregue
à ferrugem e, por lei, devendo ser destinada à Reforma Agrária, a grande
propriedade representava um temido império na região.
Combinamos
que, quem, por força maior, não pudesse comparecer ao ato da ocupação, avisasse
via mensagem de celular o quanto antes à coordenação. Alguns informaram, alegando
adoecimento. Sem dar nenhuma notícia, seu Raimundo apareceu no terceiro dia de
terra ocupada. Aproximou-se meio encabulado, escutou um pouco a conversa e pediu
licença para falar.
“Eu
não vim por medo”, disse.
“Eu
não gosto de mentir”, continuou. As lágrimas escorriam pelo rosto marcado daquele
camponês de quase 70 anos de idade.
“A
pessoa só deve mentir se for para se defender. O que não é o caso. Eu não gosto
de mentir. Eu não vim por medo”, repetiu. Seu Raimundo se tremia.
Depois
de mais de um ano de convivência militante e uma carrada de atribulações
enfrentadas juntos, arrisco a dizer que não foi somente uma questão de caráter o
que levou seu Raimundo a confessar seus sentimentos a pessoas até pouco tempo
desconhecidas.
Ele,
que poderia ter inventado uma doença ou qualquer outra mentira para justificar
sua falta, optara pela verdade, ainda que a justificativa gerasse risos ou não
fosse bem aceita pela comunidade como “motivo de força maior”. Afinal de
contas, medo todo mundo tinha.
As
organizações da classe trabalhadora que defendem uma transformação estrutural
da sociedade reduziram seu contato com as necessidades do povo a momentos
pontais de agitação. Uma panfletagem aqui, uma atividade cultural ali... Ações
importantes, mas insuficientes para construir a confiança necessária. Apesar de
praticamente todas diagnosticarem a ausência do Trabalho de Base como uma das
principais causas de seus declínios ou vulnerabilidades, poucas e raras são as
vezes que ele acontece. Por qual razão? Carência de planejamento, de
disponibilidade? Ou será que o que nos falta mesmo é coragem?
Já seu Raimundo, daquele dia em
diante, não perdeu mais nenhuma atividade. Na comunidade, ele ganhou novo
sobrenome: Coragem. Raimundo Coragem. Coragem, não por ter participado da
heroica resistência contra jagunços armados, como viria a ocorrer dias depois.
Coragem por ter tido a coragem de falar a verdade.
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