sexta-feira, 21 de junho de 2024

POR QUE REUNIÃO NA FAVELA É ALGO TÃO PERIGOSO PARA O SISTEMA?

 


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

        Reza a lenda que, no Ceará, um conhecido megaempresário ordena a seus gerentes: "Se tiver dois ou três trabalhadores conversando, separem-nos o mais rapidamente, porque é motim."

        Na Bíblia, algo parecido é atribuído ao revolucionário de Nazaré, ainda que em sentido totalmente inverso: "Se estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estarei presente."

        O Manifesto do Partido Comunista, elaborado em meados de 1800 para auxiliar a luta da classe trabalhadora por sua libertação, é concluído com um "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!"

        É bem famosa também a forma que os invasores-colonizadores utilizaram para guerrear e assaltar os povos nativos do território que depois viria a ser chamado de Brasil: dividir para dominar, jogar oprimido contra oprimido.

        A reunião é o princípio mais básico e poderoso para transformações de realidades, sobretudo quando realizada por pessoas que padecem por problemas comuns, como é o caso da população que mora em favelas no Brasil.

        A arquitetura espremida das comunidades periféricas, com o amontoado de casas coladas umas nas outras, faz com que, de uma maneira bem particular, toda a gente viva em permanente reunião. Se falta água em casa, basta uma fala mais alta do vizinho para saber que lá a água falta também. E se há comunicação que denuncia a negação de direitos, há possibilidades concretas de identificação de suas causas e de organização para resolvê-las. Um grande risco, portanto, para a dominação capitalista, autora da miséria que faz da vida de milhões uma luta contínua pela sobrevivência.

        Daí que, para manterem sua ordem desigual funcionando, os banqueiros e megaempresários, donos reais e não eleitos do poder, recorrem a uma política de violência sem fim contra a classe que se constitui a imensa maioria da população. É preciso impedir a todo custo o exercício da reunião, potencializada pelas próprias e difíceis condições de vida.

        Esses dias assisti a um vídeo em que um jovem negro e empobrecido portando um fuzil denuncia: "Se o mercado de drogas movimenta bilhões por ano, quem ganha com ele? Porque, olhem para mim, eu sou um fodido." O que essa mensagem nos ensina?

        Se o uso de entorpecentes, legais ou não, representa um problema presente em toda a sociedade, ou seja, em todas as classes sociais, por que, ao fecharmos os olhos e imaginarmos alguém viciado ou traficante, o que nos vêm à cabeça é justamente a fotografia de um jovem, magro, negro e favelado? Por que será que, nas mentes de muitos de nós, os bairros periféricos, onde reside a imensa porção das pessoas que constroem este país, da doméstica ao pedreiro, são sinônimos de criminalidade, e não de um merecido e atrasado “obrigado por tudo”?

         A autodeclarada "Política de Combate às Drogas" nada mais é do que uma maneira de justificar para a sociedade o açoite constante da senzala. Ação contínua e planejada para dificultar a prática da reunião entre os oprimidos. Por esse motivo é tão comum escutarmos que, nas favelas, o Estado só chega através da violência policial. "Não chegam os direitos."

        E quem são os policiais? Em sua maioria, pessoas com a mesma origem periférica e marginalizada. Dividir para governar é a estratégia do sistema. Pobre contra pobre, comunidade contra comunidade. O homem preto e favelado que veste a farda da polícia tortura e mata a serviço de quem lucra bilhões com o massacre de sua própria gente. Por esse motivo, os capitalistas não estão nem aí com a morte de policiais. Até porque, pela miséria que se alastra, produzida pela concentração de riqueza em umas poucas mãos, há sempre muitos outros necessitados de sobrevivência dispostos a substituir os falecidos. A sujagem cerebral que recebem do alto comando faz com que o favelado fardado creia que o problema é seu "incorrigível" vizinho, já então observado como uma espécie inferior de pessoa, um não-humano. Condição que, sem que perceba, acaba por atribuir a si mesmo.

        E quem são os jovens que matam jovens? Pessoas encurraladas, com perspectivas de vida e de dignidade futura trancafiadas. A maioria laranjas involuntários do sistema, que se apontam armas e se cospem fogo antes que sobre tempo para que se entendam como herdeiros iguais da mesma trama capital.

        Em Crateús, cidade do interior cearense, perguntaram a uns policiais que palestravam sobre segurança pública o que fazer com o “crime primeiro”. “Há uma grande barragem em fase de conclusão no município. Milhares de famílias estão sendo neste momento expulsas de suas terras, de suas casas, de suas histórias. Para onde elas irão? Para cá, para as periferias desta cidade. E amanhã vamos aplaudir a prisão ou morte de mais uns jovens, quando, na verdade, o crime primeiro, o causador de todos os outros, está sendo cometido agora, à plena luz do dia, em total flagrante! Tá vendo só, policial? O sistema usa vocês, nós, usa todos nós trabalhadores como bucha de canhão.”

        Outro dia, enquanto estabelecia uma conversa informal sobre os problemas sociais sentidos pela maioria da população e suas causas, isso com um rapaz que no passado praticara alguns assaltos, mostrei-o uma frase do poeta Bertolt Brecht: "Qual crime maior: assaltar ou fundar um banco?". No que ele me respondeu: "Se essas ideias de comunismo chegam até nós, o sistema está perdido."

        Boa parte dos setores médios da sociedade têm verdadeiro pânico da favela por duas razões básicas. A primeira é ideológica. A classe dominante cria mecanismos para que este segmento se identifique com o lobo, e não com as ovelhas, rebanho o qual integram. "Classe média", inclusive, é um termo de distinção em relação à "classe trabalhadora", a qual se insere também a população moradora das favelas. Assim, os representantes da classe capitalista são cultuados como símbolos de sucesso e inspiração, enquanto as pessoas que moram em barracos e lutam por moradia, por exemplo, são vistas como perigosa ameaça. A segunda razão pode ser explicada pela fala de uma amiga de um médico, vítima, há uns anos atrás, de latrocínio na Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro: "Meu amigo foi vítima de vítimas."

        É sobre a parcela da classe trabalhadora que teve condições de estudar e exercer funções melhores remuneradas, que o rescaldo violento da violência gerada pelo capitalismo recai em segunda instância. Até porque nunca vi um megaempresário reclamar por ter tido seu celular roubado. Os problemas criados por esta classe não chegam até ela. Ao menos não como chegam até nós, pisoteadas bases da pirâmide social.

        O pavor incutido nas vítimas das vítimas existe para que não se aproximem, para que a base não apóie as lutas advindas da base da base. Para que se identifiquem com o coiote, e não com as ovelhas, que são. Para que desejem cegamente o encarceramento em massa, para que não se comovam com a tortura, com as rajadas de tiros disparadas a esmo pelo Estado, com as invasões de domicílios sem mandado judicial realizadas à qualquer hora do dia, da noite ou da madrugada, para que não se sensibilizem com os assassinatos promovidos cotidianamente contra o povo empobrecido. Enquanto isso, os problemas dos quais os setores médios tentam se distanciar só aumentam, e os muros e cercas elétricas se mostram cada dia mais inúteis. A coisa é tão irracional que, se o problema é a proliferação de armas, por que não concentrar esforços na luta pelo fechamento das indústrias capitalistas que as produzem? Enfim, o intuito do sistema é sempre o mesmo: dividir para dominar.

        Finalizo esta reflexão dizendo que, em meus 20 anos de militância construindo o Poder Popular, não encontrei solidariedade mais profunda, abrangente e verdadeira do que aquela realizada dia a dia, hora a hora, minuto a minuto nas comunidades periféricas, seja na cidade ou no campo. O capitalismo não é onipotente. Onde existe injustiça, vive e resiste seu antagonista, a humanidade em atos.

        O desafio, então, segue se reunir, se reunir, se reunir! E àquelas e aqueles que sonham com um mundo outro, me refiro à militância anticapitalista (seguidora de Jesus de Nazaré, anarquista, socialista, comunista...), cabe somente encontrar formas de cair para dentro. Até porque, como sabemos, toda reunião é permeada por ideologias, e nem todas promovem o necessário e vital caminhar para a libertação.

        Não compete a revolucionários e revolucionárias o crime covarde do dedo em riste do julgamento à distância. É preciso trabalhar as bases para unificar a luta contra o capitalismo, inimigo comum de toda a humanidade. Pois somente assim, no dia em que o morro descer e não for carnaval, celebraremos, toda gente junta, o samba alegre e imatável de um novo amanhã.

Um comentário:

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  Robson de Sousa Moraes (Geógrafo, Professor da UEG) robson.moraes@ueg.br     A Terra é nossa Casa Comum, um lar compartilhado ...