Thales Emmanuel, militante da Organização Popular –
OPA.
Gracinha morava nas ruas da pequena
cidade de Lameiro, no sertão nordestino. Era tida como alma perturbada, doida, atormentada
por sete demônios. Na pele, as chagas se espalhavam qual pesticida ao vento.
Cicatrizes diversas - algumas só meio fechadas -, lodo, lama entranhada, vermes.
Um dia, por caridade, deram um banho em Gracinha e encontraram bichos até na
vagina.
De onde ela veio, quem são seus
pais, seus avós, ninguém sabia. Gracinha não tinha história. Era apenas uma
endemoniada ausente nas estatísticas.
Numa noite esquecida de Natal, ao
atravessar a rua da Praça Central, ela, que vinha de lugar nenhum, foi
atropelada pelo filho de um rico fazendeiro da região. Seu corpo, arremessado
por mais de cinco metros, amassou gravemente o reluzente capô do automóvel. As
pessoas pararam a festa para lamentar o prejuízo. “Doida cega! Não enxerga por
onde anda?!”
Estatelada no chão, imóvel, Gracinha acompanhava
a movimentação das luzes com olhos bambos, até ser jogada no dorso de uma
carroça e levada ao hospital da cidade. Sorte dela que era Natal e o piedoso
médico não demorou para examiná-la. Gracinha permaneceu calada do começo ao fim
da consulta. Então, o doutor conferiu-lhe o diagnóstico: “Paciente portadora de
mudez.” Gracinha era muda. Ninguém se dera conta por todos aqueles anos. “Bem
que eu desconfiava”, “Realmente, ela nunca abriu a boca desde que chegou aqui”,
comentou por uns dias a população da cidade.
O pedido de esmola sempre fora puramente
gestual, com a cabeça baixa e a embalagem de Qualy vazia estendida na ponta dos
dedos.
Quando a meninada soube do mutismo,
começou a chamá-la de “doida-muda” e a brincar de tiro-ao-alvo com pedras de
qualquer tipo e tamanho. Quem acertasse na doida-muda ganhava dez notas de
carteiras de cigarro. Se ela gemesse, o valor da tacada subia pra cem. Apedrejada,
Gracinha nem falava nem gemia.
A moradora sem teto mais antiga das
redondezas dormiu na calçada da casa paroquial naquela noite. Com pedaços de
papelão, forjou rapidamente uma cama. Em cima de um velho trapo enrolado, seu escudeiro
fiel, descansou a cabeça.
Quando o padre Matias, recém-chegado à
diocese, abriu a janela para o sol da manhã, deparou-se com Gracinha, já de pé,
estendendo-lhe, de cabeça baixa, a embalagem de Qualy.
“Oh, bom dia, senhora! Entre, venha
tomar o café comigo”, disse carinhosamente arrastando seu sotaque irlandês.
Gracinha nem agradeceu nem assentiu
o convite. Apenas entrou.
À mesa, o padre conversava de um
jeito simples e sem cerimônia. O odor pútrefo de carne em decomposição que
exalava do corpo da visitante incrivelmente parecia não chegar às suas narinas;
ou, se chegava, as tocava de uma maneira absolutamente inimaginável. Da parte
de Gracinha, não havia encabulamento nenhum, era só mastigação. Com o olhar
invariavelmente virado para baixo, calada entrou, calada saiu.
Deste dia em diante, sempre que Gracinha
dormia na calçada da casa paroquial, padre Matias, assim que abria a janela, a
convidava para, juntos, quebrarem o jejum. Da parte dela, as mesmas maneiras:
cabeça declinada e mastigação; calada entrava, calada saía.
Depois de botar para dentro um prato de
cuscuz de arroz com leite, sua comida mais saborosa, numa dessas manhãs, Gracinha
abriu a boca e, para espanto de seu amigo, falou:
“Deus potreja o sinhô.”
O vigário se engasgou de quase
morrer.
“Meu Deus, você fala!”
A pobre mulher admitiu com dois rápidos
piscares de olhos.
“Mas por que esconder isso por tanto
tempo?”
Meio sem jeito, Gracinha ergue a
cabeça, não obstante não conseguisse fazer o mesmo com os olhos, e, com o tom de
voz de quem se culpa pela maldição que carrega, responde:
“Era minha defesa.”
E assim sucedeu o Milagre de Lameiro!
A muda falou, e os que tinham ouvidos, puderam se curar da surdez.
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