sexta-feira, 5 de setembro de 2025

A LEI DE VANDERLEI

 


Por Thales Emmanuel, militante da OPA


     Conheci-o numa manifestação de rua contra os agrotóxicos, na região de Limoeiro do Norte, Ceará. Estava vermelho, e não era do sol. Fora envenenado na e pela empresa do agronegócio em que trabalhava. Numa análise laboratorial, descobriu alterações não naturais em seu código genético. Segundo a pesquisadora, aquilo indicava que logo em breve Vanderlei adoeceria de câncer.

    Aquele ser humano, trabalhador rural, proibido do acesso livre à terra, jogado na fila do desemprego e, assim, forçado a se submeter às mais desumanas condições para sustentar sua família, protestava, reivindicando o direito humano de viver como um humano.

    Seu grito vibrava para além de palavras atiradas contra os agrotóxicos. Ecoava contra as cercas de uma sociedade cujo deus é o dinheiro. Como pode um país desse tamanho, ter tanta gente sem um chão para plantar e morar? Sendo que a existência de uma só pessoa sem terra deveria ser motivo mais que suficiente para tornar todas os demais seres humanos insurgentes contra o sistema que isso provoca! Como pode o trabalho, a mais potente força divina de criação, ser sinônimo de exploração, desigualdade e adoecimento? À sua maneira, Vanderlei gritava mesmo era contra a sacralização da propriedade privada!

    Eram palavras contra políticos eleitos pelo povo, mas que tramam e conspiram contra o próprio povo. Afinal de contas, o veneno tá na lei, é autorizado com a única e cínica finalidade de engordar as gordas contas bancárias de uns poucos endinheirados, traficantes modernos de gente. Os navios negreiros de outrora continuam sua saga genocida em terra firme e, tal como antes, à luz do dia. A morte matada é planejada, conhecem-se as consequências e aplicam-se de maneira dissimulada a velha fórmula das correntes e açoites. Os capitalistas sabem bem para quem destinam as doenças geradas por sua sanha de lucro. “Na mansão, o fato não sensibiliza”. Vanderlei tinha plena consciência que sua vida não se esvaía por acidente. O lucro é um crime premeditado!

     Suas palavras eram mais que palavras. Eram frases de sentimento. Sentimento de carne e osso. Dezenas de milhões de carnes e ossos iguais a ele.

    Na primeira vez, estava de corpo inteiro. Na segunda, arrancaram-lhe um dos pés. No terceiro protesto, faltava-lhe uma perna. Na quarta, onde estava? Vanderlei, amputado membro a membro por conta do câncer, não mais existia. O que restara de seu corpo jazia agora em ensurdecedor silêncio.

     Mas o que os senhores da morte não sabiam era que, esquartejado como um Tiradentes, reduzido a partes de si mesmo, Vanderlei se tornava mais que um Vanderlei. Vanderlei se multiplicava. Propagava-se como semente ao vento, e por inteiro, na carne, nos ossos e nas palavras de quem, com coragem e sentimento, tocava em frente sua teimosa e humana lei de não-desistência.

    Essa é a lei, a lei de Vanderlei! O trabalhador que lutou até o fim da vida contra a morte matada e as leis que acumpliciam assassinos não confessos recebedores de honrarias sádicas.

    Vanderlei, a lei irrevogável, a lei que não morre jamais.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

MILAGRES NOS ANDES: VIDA ENREDO DA VIDA


 

Por Thales Emmanuel, militante da OPA.



    Esses dias assisti ao filme A Sociedade das Neves, dirigido por J. A. Boyona. Lançado em 2024, ele retrata a história real de um acidente aéreo envolvendo um time amador de rúgbi, de Montevidéu, Uruguai. O avião se chocou contra uma montanha quando atravessava a Cordilheira dos Andes em direção a Santiago do Chile. Era 13 de outubro de 1972.

    Das 45 pessoas a bordo, 12 morreram no momento da colisão. Outros tantos nos dias imediatamente seguintes, decorrentes dos graves ferimentos. O frio extremo também levou algumas vidas. Fazia menos 30°C às noites. Não fosse o calor do abraço, todos teriam partido.

    Dez dias depois da queda, as operações de resgate foram interrompidas. Nunca ninguém sobrevivera nos Andes em tais condições! Nesse mesmo período, acabou a comida e os vivos começaram a se alimentar da carne dos amigos mortos. Quando a dificuldade parecia chegar ao limite máximo, eis que duas avalanches os soterram no pedaço de avião que servia de abrigo. Passaram alguns dias enterrados na neve.

    O avião caiu numa região das mais inóspitas e de difícil acesso; porém, entre uma montanha e outra, havia uma brecha, um paredão menor, que evitou a colisão frontal. Depois, apareceu um longo declive de neve sem rochas afloradas, uma espécie de escorrego natural, em ângulo quase perfeito para pousos sem asas, sem trem de pouso e com aeronave cortada ao meio. Tudo milimetricamente ajustado!

    Há milagres que simplesmente acontecem. Nestes, até o mais elaborado “por quê?” não ultrapassa a casca superficial dos fatos. Isso já é em si mesmo fascinante. Porém, o que mais chamou minha atenção foi como os sobreviventes conduziram a luta coletiva pela vida.

    O capitão do time de rúgbi, Marcelo, deu a primeira ideia: “Vamos guardar os alimentos tudo numa mala só!” E, a partir dali, a propriedade privada dos itens necessários à sobrevivência de todos foi abolida. A comunhão se tornou a base das relações materiais, que se tornou a base das relações pessoais, e vice-versa. Uma nova sociedade nasceu: A Sociedade Comunista da Neve!

    A exceção dos inaptos, todos se viravam para fazer alguma coisa. Retirar os bancos para ampliar o espaço interno, distribuir racionalmente a comida, preparar expedições no território, cuidar dos feridos, derreter o gelo para beber a água, e por aí vai.

    Na Sociedade da Neve não havia patrão nem privilegiados. Alguns se despontavam como líderes, mas seu poder não era maior do que o de ninguém. Todas as habilidades estavam a serviço da coletividade, da vida. A igualdade na Sociedade da Neve não tinha nada a ver com a supressão das diferenças individuais.

    Na Sociedade da Neve não havia morador de rua nem aluguel. Não havia esmola nem esmoléu. Nenhum filantropo rico existia por lá. E com ele se foi também a demagogia. A camaradagem não precisava de estímulos artificiais, posto que se retroalimentava da própria essência da organização social. Com o tempo, nem “obrigado” se dizia, nem favores se devia. Cada amigo era verdadeiramente um irmão. Na Sociedade da Neve não existia dinheiro. “Comprar pra quê, se já me pertence?”

    Agora imagine se não tivessem revolucionado a organização da vida, já pensou como seria? Quanto tempo duraria? Quanta desconfiança teriam uns dos outros? Quanto adoecimento mental evitável inevitariam? Quem seria o pai da indústria farmacêutica a anestesiar as dores existenciais? Onde prenderiam os que, privados de abrigo e de comida, roubariam? Quem policiaria a sociedade? Quem mandaria na polícia? Numa Sociedade Capitalista da Neve, todos se devorariam ainda em vida! Mas espera aí! Realizariam uma revolução antes do fim? Quem a realizaria?

    Após 72 dias enfrentando condições extremas, os 16 sobreviventes foram finalmente salvos. Um dos resgatistas, que precisou ficar no local até amanhecer o dia, teve medo de ser canibalizado e passou a noite em claro, numa barraca distante e separada dos demais. Ele não entendia da educação na Sociedade da Neve. De onde veio, as relações se edificam segundo princípios bem diferentes. Lá, salvar vidas é apenas uma profissão.

    Há milagres que não se explica. Decerto, há outros que, como obra conscientemente humana, são racionalizáveis. Sem estes, nenhuma sobrevivência seria possível, nem ontem nem amanhã, nem hoje; na neve ou em qualquer lugar...

 

A LEI DE VANDERLEI

  Por Thales Emmanuel, militante da OPA       Conheci-o numa manifestação de rua contra os agrotóxicos, na região de Limoeiro do Norte, Cear...