quarta-feira, 3 de setembro de 2025

MILAGRES NOS ANDES: VIDA ENREDO DA VIDA


 

Por Thales Emmanuel, militante da OPA.



    Esses dias assisti ao filme A Sociedade das Neves, dirigido por J. A. Boyona. Lançado em 2024, ele retrata a história real de um acidente aéreo envolvendo um time amador de rúgbi, de Montevidéu, Uruguai. O avião se chocou contra uma montanha quando atravessava a Cordilheira dos Andes em direção a Santiago do Chile. Era 13 de outubro de 1972.

    Das 45 pessoas a bordo, 12 morreram no momento da colisão. Outros tantos nos dias imediatamente seguintes, decorrentes dos graves ferimentos. O frio extremo também levou algumas vidas. Fazia menos 30°C às noites. Não fosse o calor do abraço, todos teriam partido.

    Dez dias depois da queda, as operações de resgate foram interrompidas. Nunca ninguém sobrevivera nos Andes em tais condições! Nesse mesmo período, acabou a comida e os vivos começaram a se alimentar da carne dos amigos mortos. Quando a dificuldade parecia chegar ao limite máximo, eis que duas avalanches os soterram no pedaço de avião que servia de abrigo. Passaram alguns dias enterrados na neve.

    O avião caiu numa região das mais inóspitas e de difícil acesso; porém, entre uma montanha e outra, havia uma brecha, um paredão menor, que evitou a colisão frontal. Depois, apareceu um longo declive de neve sem rochas afloradas, uma espécie de escorrego natural, em ângulo quase perfeito para pousos sem asas, sem trem de pouso e com aeronave cortada ao meio. Tudo milimetricamente ajustado!

    Há milagres que simplesmente acontecem. Nestes, até o mais elaborado “por quê?” não ultrapassa a casca superficial dos fatos. Isso já é em si mesmo fascinante. Porém, o que mais chamou minha atenção foi como os sobreviventes conduziram a luta coletiva pela vida.

    O capitão do time de rúgbi, Marcelo, deu a primeira ideia: “Vamos guardar os alimentos tudo numa mala só!” E, a partir dali, a propriedade privada dos itens necessários à sobrevivência de todos foi abolida. A comunhão se tornou a base das relações materiais, que se tornou a base das relações pessoais, e vice-versa. Uma nova sociedade nasceu: A Sociedade Comunista da Neve!

    A exceção dos inaptos, todos se viravam para fazer alguma coisa. Retirar os bancos para ampliar o espaço interno, distribuir racionalmente a comida, preparar expedições no território, cuidar dos feridos, derreter o gelo para beber a água, e por aí vai.

    Na Sociedade da Neve não havia patrão nem privilegiados. Alguns se despontavam como líderes, mas seu poder não era maior do que o de ninguém. Todas as habilidades estavam a serviço da coletividade, da vida. A igualdade na Sociedade da Neve não tinha nada a ver com a supressão das diferenças individuais.

    Na Sociedade da Neve não havia morador de rua nem aluguel. Não havia esmola nem esmoléu. Nenhum filantropo rico existia por lá. E com ele se foi também a demagogia. A camaradagem não precisava de estímulos artificiais, posto que se retroalimentava da própria essência da organização social. Com o tempo, nem “obrigado” se dizia, nem favores se devia. Cada amigo era verdadeiramente um irmão. Na Sociedade da Neve não existia dinheiro. “Comprar pra quê, se já me pertence?”

    Agora imagine se não tivessem revolucionado a organização da vida, já pensou como seria? Quanto tempo duraria? Quanta desconfiança teriam uns dos outros? Quanto adoecimento mental evitável inevitariam? Quem seria o pai da indústria farmacêutica a anestesiar as dores existenciais? Onde prenderiam os que, privados de abrigo e de comida, roubariam? Quem policiaria a sociedade? Quem mandaria na polícia? Numa Sociedade Capitalista da Neve, todos se devorariam ainda em vida! Mas espera aí! Realizariam uma revolução antes do fim? Quem a realizaria?

    Após 72 dias enfrentando condições extremas, os 16 sobreviventes foram finalmente salvos. Um dos resgatistas, que precisou ficar no local até amanhecer o dia, teve medo de ser canibalizado e passou a noite em claro, numa barraca distante e separada dos demais. Ele não entendia da educação na Sociedade da Neve. De onde veio, as relações se edificam segundo princípios bem diferentes. Lá, salvar vidas é apenas uma profissão.

    Há milagres que não se explica. Decerto, há outros que, como obra conscientemente humana, são racionalizáveis. Sem estes, nenhuma sobrevivência seria possível, nem ontem nem amanhã, nem hoje; na neve ou em qualquer lugar...

 

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