quinta-feira, 27 de outubro de 2022

VINGANÇA E PERDÃO

 


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular - OPA

 

            Quilombo do Cumbe, Aracati-CE, setembro de 2009. A estrada da comunidade é bloqueada em forma de protesto contra a invasão de um mega empreendimento empresarial, que praticamente destruíra a vida comunitária. Os veículos de grande porte se amontoam um atrás do outro. O canteiro de obra para. No segundo dia de trancamento, numa reunião entre os comunitários, um morador profere as seguintes palavras:

"Na cidade, estão dizendo que, caso não atendam nossa pauta, iremos quebrar os caminhões da empresa. Quero dizer que sou contra vandalismo e, se isso vier a acontecer, estou fora da luta!"

            Os dias se sucedem. Representantes da empresa e dos governos aparecem uma, duas, três vezes para negociar. Mentem, fazem promessas vazias de concretude. A comunidade se mantém firme na decisão de só abrir com o encaminhamento de soluções reais. As intimidações por parte do poder econômico não param. Ameaças veladas. Pessoas estranhas passam a rondar o território da resistência. O prefeito da cidade vai a um programa de rádio e declara que há terroristas entre os aquilombados, que de "sexta pode passar, mas à segunda não chegará". A tensão vai às alturas. As famílias montam vigília, dia e noite acesas. O desgaste físico é tão visível quanto a coragem dos moradores em seguir adiante. Numa manhã de sol, dois capangas tentam sequestrar uma das lideranças, que escapa por pouco. Representantes da empresa e dos governo marcam nova rodada de negociação. No décimo sétimo dia, a comunidade se reúne para avaliar a situação. O morador, que no segundo dia disse ser contra vandalismo, se inscreve. Sua fala é breve e direta.

"Amanhã, o representante do governo vem negociar com a gente de novo. É o seguinte: se chegar como das outras vezes, trazendo só mentira, eu digo que a gente tem que tocar fogo nesses caminhões, tudim!"

            Situações extremas levam a ações extremas.  É da condição humana, social e também da física: para cada ação há uma reação igual e oposta. Não achemos, nós, que a dor provocada pela chibata ao longo de séculos flui em calmaria para um oceano de esquecimento. Está tudo represado. Toda mentira, humilhação, exploração, perseguição... As cicatrizes podem ser invisíveis para quem olha, mas não para quem as sente.

            E na hora que tudo explodir, "no dia em que o morro descer e não for carnaval", que a anunciada catarse social encontre na derrubada do capitalismo e na construção de uma sociedade sem classes e sem opressões seu mais genuíno espírito de vingança e perdão.

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