segunda-feira, 8 de agosto de 2022

O MILAGRE DE LAMEIRO

 

Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

            Gracinha morava nas ruas da pequena cidade de Lameiro, no sertão nordestino. Era tida como alma perturbada, doida, atormentada por sete demônios. Na pele, as chagas se espalhavam qual pesticida ao vento. Cicatrizes diversas - algumas só meio fechadas -, lodo, lama entranhada, vermes. Um dia, por caridade, deram um banho em Gracinha e encontraram bichos até na vagina.

            De onde ela veio, quem são seus pais, seus avós, ninguém sabia. Gracinha não tinha história. Era apenas uma endemoniada ausente nas estatísticas.

Numa noite esquecida de Natal, ao atravessar a rua da Praça Central, ela, que vinha de lugar nenhum, foi atropelada pelo filho de um rico fazendeiro da região. Seu corpo, arremessado por mais de cinco metros, amassou gravemente o reluzente capô do automóvel. As pessoas pararam a festa para lamentar o prejuízo. “Doida cega! Não enxerga por onde anda?!”

Estatelada no chão, imóvel, Gracinha acompanhava a movimentação das luzes com olhos bambos, até ser jogada no dorso de uma carroça e levada ao hospital da cidade. Sorte dela que era Natal e o piedoso médico não demorou para examiná-la. Gracinha permaneceu calada do começo ao fim da consulta. Então, o doutor conferiu-lhe o diagnóstico: “Paciente portadora de mudez.” Gracinha era muda. Ninguém se dera conta por todos aqueles anos. “Bem que eu desconfiava”, “Realmente, ela nunca abriu a boca desde que chegou aqui”, comentou por uns dias a população da cidade.

O pedido de esmola sempre fora puramente gestual, com a cabeça baixa e a embalagem de Qualy vazia estendida na ponta dos dedos.

Quando a meninada soube do mutismo, começou a chamá-la de “doida-muda” e a brincar de tiro-ao-alvo com pedras de qualquer tipo e tamanho. Quem acertasse na doida-muda ganhava dez notas de carteiras de cigarro. Se ela gemesse, o valor da tacada subia pra cem. Apedrejada, Gracinha nem falava nem gemia.

A moradora sem teto mais antiga das redondezas dormiu na calçada da casa paroquial naquela noite. Com pedaços de papelão, forjou rapidamente uma cama. Em cima de um velho trapo enrolado, seu escudeiro fiel, descansou a cabeça.

Quando o padre Matias, recém-chegado à diocese, abriu a janela para o sol da manhã, deparou-se com Gracinha, já de pé, estendendo-lhe, de cabeça baixa, a embalagem de Qualy.

            “Oh, bom dia, senhora! Entre, venha tomar o café comigo”, disse carinhosamente arrastando seu sotaque irlandês.

            Gracinha nem agradeceu nem assentiu o convite. Apenas entrou.

            À mesa, o padre conversava de um jeito simples e sem cerimônia. O odor pútrefo de carne em decomposição que exalava do corpo da visitante incrivelmente parecia não chegar às suas narinas; ou, se chegava, as tocava de uma maneira absolutamente inimaginável. Da parte de Gracinha, não havia encabulamento nenhum, era só mastigação. Com o olhar invariavelmente virado para baixo, calada entrou, calada saiu.

Deste dia em diante, sempre que Gracinha dormia na calçada da casa paroquial, padre Matias, assim que abria a janela, a convidava para, juntos, quebrarem o jejum. Da parte dela, as mesmas maneiras: cabeça declinada e mastigação; calada entrava, calada saía.

Depois de botar para dentro um prato de cuscuz de arroz com leite, sua comida mais saborosa, numa dessas manhãs, Gracinha abriu a boca e, para espanto de seu amigo, falou:

“Deus potreja o sinhô.”

            O vigário se engasgou de quase morrer.

            “Meu Deus, você fala!”

            A pobre mulher admitiu com dois rápidos piscares de olhos.

            “Mas por que esconder isso por tanto tempo?”

            Meio sem jeito, Gracinha ergue a cabeça, não obstante não conseguisse fazer o mesmo com os olhos, e, com o tom de voz de quem se culpa pela maldição que carrega, responde:

“Era minha defesa.”

            E assim sucedeu o Milagre de Lameiro! A muda falou, e os que tinham ouvidos, puderam se curar da surdez.

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