Thales Emmanuel,
militante da Organização Popular – OPA
Em 2009, o Quilombo do
Cumbe travava mais uma luta contra empresas invasoras. Desta vez, contra uma
proprietária de um parque de energia eólica, que se instalava repleto de
ilegalidades sobre a comunidade. Os danos causados não eram poucos: prejuízo
histórico imensurável, uma vez que se fixava sobre um campo arqueológico; adoeceu
a vida comunitária, causando problemas psicológicos e espirituais seríssimos; o
tráfego de veículos de grande porte produzia uma poeira permanente, que
provocava problemas respiratórios, principalmente em idosos e crianças; várias das
moradias foram danificadas, algumas com iminente risco de desabamento; crianças,
traumatizadas com os tremores do trânsito carregado, corriam a abraçar seus
pais à procura de proteção. Enfim, o projeto, como de costume, feito em
confortáveis escritórios da classe dominante, desconsiderou a existência de
vida humana no local.
Não demorou muito, a comunidade protestou: rolou a estrada para impedir o trânsito que abastecia a obra. “Rolou”, cavou uma larga fenda de uma ponta a outra da via e fincou estacas e arames para sinalizar o descontentamento. Uma, duas, três investidas. Os bloqueios começavam pela manhã e terminavam antes do meio dia. Porém, no último, se juntaram militantes de outras organizações, e a paralização durou incríveis dezenove dias.
Eu e a companheira
Jacinta Sousa fomos designados para a luta do Cumbe. Chegamos na noite do
primeiro ou do segundo dia e permanecemos até o final. Outros militantes se
revezaram. Quando conseguíamos dormir, o fazíamos ao lado da estrada, a uns
cinco metros do “rolamento”, no alpendre simples e aconchegante de dona Auxiliadora,
uma das moradoras. Não havia muro entre a casa e a estrada, de modo que estar
no alpendre era praticamente o mesmo de estar no local da resistência.
Representantes da
empresa e de governos de todas as esferas apareceram para convencer a
comunidade a recuar, que, “com diálogo, tudo se resolveria”. Acontece que,
calejadas, as famílias não mais acreditaram nas promessas e, reunidas, decidiam
continuamente manter o bloqueio. “Só abriremos depois que o que queremos for
atendido na prática”. Era a mais cara construção do então Programa de
Aceleração do Crescimento, o PAC. O aluguel de uma única máquina utilizada na
obra, contam, custava diariamente 25 mil reais. A comunidade estava
pressionada, e os representantes da burguesia aperreados para concluir o empreendimento.
Diante do fracasso das expedições,
o prefeito municipal, um dos mais ricos empresários da região, vai à sua rádio
e, numa sexta-feira, declara:
“Isso não é da vontade
da comunidade. Têm uns terroristas infiltrados por lá. De hoje pode passar, mas
a segunda não chegará”, não recordo com detalhe, mas as palavras foram quase
estas, e o sentido, precisamente o mesmo.
Desde
o instante em que as autoridades se deram conta de que o Cumbe não estava de
brincadeira, as tentativas de intimidação se tornaram constantes. Porém, não
esperávamos uma ameaça tão explícita. Cismados, na boquinha da noite reunimos a
equipe de segurança para montar uma estratégia de defesa. Se o prefeito não
blefara, qualquer marmota mais séria poderia acontecer a partir daquela noite.
A reunião não foi
fácil. Passados mais de dez dias de fechamento, o cansaço chegara e com ele
certa acomodação, que nos impelia a relativizar riscos. Alguns não compareceram
e outros mostravam sinais de irritabilidade. Pensamos em algumas alternativas,
mas a que vingou foi manter o sistema como estava. Preocupado, cheguei para
Jacinta e falei:
“Jacinta, à noite tem
ficado pouca gente. Praticamente só nós, uns dois ou três militantes e a equipe
de segurança, ainda assim bem desfalcada. Não seria melhor a segurança se
posicionar no mato e deixarmos a estrada vazia? Dormiríamos na casa de algum
morador. É um risco desnecessário a gente aqui. Vai que esse prefeito envia
capangas durante a madrugada...”
Jacinta
me olhou de uma maneira que jamais esqueci e disse acolhedoramente:
“Vá
dormir na casa de alguém. Eu fico.”
Retruquei:
“Jacinta,
não tem sentido a gente dormir aqui! Não é questão de medo ou de coragem, mas
de racionalidade!”
“Thales,
vá! Você está precisando descansar. Eu fico”, e me olhou acolhedoramente de
novo, já estendendo os panos para se deitar.
“Aí
é cabeça dura!”, pensei. Depois desse papo rápido, me levanto e faço uma rápida
ronda com um dos companheiros da segurança e me deito. Difícil dormir. “Ô
veinha teimosa!” Lá pras tantas, escuto um barulho. Me sento para ver o que é.
O ruído aumenta progressivamente. Parecia uma festa. E o que vejo? Uma carrada de
jovens da comunidade trazendo um bocado de apetrechos. Chegando ao local do
trancamento, um cava buracos, outro acende uma fogueira... De repente, montam
uma barraca no meio da estrada, armam redes, assam peixes, jogam baralho,
conversam descontraidamente, se divertem, uma verdadeira festa, que anima toda companheirada
e atrai mais gente. A segurança é garantida com animação e uma deliciosa fartura
de bagre assado com farinha!
Refletindo, só meses depois entendi aquele olhar de Jacinta para mim. Éramos os mais experientes naquele tipo de luta. O povo nos escutava e, pelo testemunho demonstrado, aprendera a confiar na gente. Certamente, naquela noite, dificilmente as famílias compreenderiam se, após a ameaça pela rádio, fôssemos dormir na casa de alguém, e não na estrada, como havíamos feito até ali. O medo possivelmente se instalaria e a tentativa de intimidação da parte do prefeito se tornaria força material e psicológica contra a resistência. Ele nos alvejaria sem dar um tiro! Graças a Jacinta, nossa permanência não só encorajou aqueles jovens, como fez com que tivessem a iniciativa de assumir para si a responsabilidade de proteção de toda a comunidade. Jacinta confiara sua vida ao povo, e o povo não a desapontara. Acho que seu inesquecível olhar estava me dizendo que formigas estão mais seguras, e são mais temidas, quando misturadas ao formigueiro.
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