No auge da repressão contra a Ocupação
Carlos Marighella, em Fortaleza, representantes de uma instituição
conhecidamente contrária à luta do povo, apareceram na comunidade distribuindo sorrisos
e presentes para as crianças. Ao nos aproximarmos, fomos apresentados.
-
Nós estamos aqui para apoiar as famílias. Semana que vem traremos duzentas
cestas básicas!
-
Que bom! Mas neste momento temos uma ordem de despejo decretada e não sabemos
se próxima semana estaremos aqui. Nossa necessidade maior agora são vídeos
contra o despejo. Tem como conversar com sua liderança e pedir para ela gravar
uma fala dizendo “Eu apoio a Ocupação Carlos Marighella”?
Não voltaram mais.
Alguns ataques que recebemos são
travestidos de apoio. Não é simples para o povo, em meio a tantas carências,
identificar de prontidão ou mesmo agir contra os coiotes, geralmente lanados de
atraente sedução e “bondade”. Em alguns casos, uma denúncia direta pode ser
manipulada e o povo se voltar fatalmente contra o denunciante.
É preciso agir com sabedoria. Em boa parte
das situações, o melhor é criar mecanismos que encalacrem o farsante e façam
com que este revele por si mesmo seus reais interesses.
Para ilustrar, vale citar um episódio em
que a construção de uma grande obra impactava mortalmente dezenas de comunidades
na zona rural do Piauí. O governo era o financiador (dinheiro público) e quem
controlava a execução do empreendimento, que beneficiaria empresas privadas da
construção civil, do agronegócio e da mineração.
Por uma questão de lógica, sabíamos que as
organizações que compunham o governo, ainda que originadas do seio do povo ou que
agiam em nome deste, dificultariam qualquer iniciativa séria de luta. Em
contrapartida, se denunciássemos de bate-pronto as “imperceptíveis” armadilhas
criadas, naquele estágio da caminhada, o povo provavelmente não entenderia.
Mais uma vez, é uma questão de
lógica. Se um corpo precisa atravessar um rio, e um outro, por acordos feitos
com a chefia administrativa da floresta, tem como atribuição o de impedir que
se entre na água, logicamente eles irão se chocar. Ainda que o atrito só se
torne visível a todos quando o primeiro se aproximar da margem.
A democracia popular acolhe a mais ampla
diversidade de ideias e opiniões, desde que estas não intencionem desarmar os
oprimidos de seu alicerce mais sagrado: sua luta e organização; desde que não
mutilem a fé que o povo deve sentir em si mesmo e na força transformadora
advinda de sua união.
Procuramos então nos focar no que
acreditávamos ser o essencial e seguimos construindo a barca, para atravessar o
rio, com as ferramentas e a matéria-prima do trabalho de base. Assim, num
determinado momento, uma potente ação direta se tornou não só iminente, como
incontível. Foi aí que, desesperadas, as “pacíficas ovelhas” apresentaram
suas garras e as lideranças das comunidades finalmente perceberam a raiz do
conflito de interesses.
Estes são dilemas reais que invariavelmente nos deparamos quando o mundo das ideias e o mundo da materialidade da vida se tornam um só. No exemplo da Marighella, exposto no início do texto, há também uma lógica inerente. Como mencionar publicamente o nome de um lutador do povo, um comunista, adotado como seu por uma comunidade surgida da ocupação de uma propriedade privada pertencente a um rico empresário, se a função social de minha entidade e dos meus líderes, como parte integrante da classe que domina o sistema, é justamente a criação e difusão de símbolos que gerem a aceitação mansa ou ativa da opressão?
Para finalizar, vale lembrar que há circunstâncias e ocasiões em que a representação do lobo é tão “imperceptivelmente” eficaz, interfere de tal forma, que o que resta fazer é dar um tempo, acompanhar de longe, direcionar esforços para outras batalhas, enquanto o povo aprende com a própria queda a se recolocar de pé.
Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA