Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.
Reza a lenda que, no Ceará, um conhecido megaempresário
ordena a seus gerentes: "Se tiver dois ou três trabalhadores conversando,
separem-nos o mais rapidamente, porque é motim."
Na Bíblia, algo parecido é atribuído ao revolucionário de
Nazaré, ainda que em sentido totalmente inverso: "Se estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, eu estarei presente."
O Manifesto do Partido Comunista, elaborado em meados de
1800 para auxiliar a luta da classe trabalhadora por sua libertação, é
concluído com um "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!"
É bem famosa também a forma que os
invasores-colonizadores utilizaram para guerrear e assaltar os povos nativos do
território que depois viria a ser chamado de Brasil: dividir para dominar,
jogar oprimido contra oprimido.
A reunião é o princípio mais básico e poderoso para
transformações de realidades, sobretudo quando realizada por pessoas que
padecem por problemas comuns, como é o caso da população que mora em favelas no
Brasil.
A arquitetura espremida das comunidades periféricas, com
o amontoado de casas coladas umas nas outras, faz com que, de uma maneira bem
particular, toda a gente viva em permanente reunião. Se falta água em casa,
basta uma fala mais alta do vizinho para saber que lá a água falta também. E se
há comunicação que denuncia a negação de direitos, há possibilidades concretas
de identificação de suas causas e de organização para resolvê-las. Um grande
risco, portanto, para a dominação capitalista, autora da miséria que faz da vida
de milhões uma luta contínua pela sobrevivência.
Daí que, para manterem sua ordem desigual funcionando, os
banqueiros e megaempresários, donos reais e não eleitos do poder, recorrem a
uma política de violência sem fim contra a classe que se constitui a imensa
maioria da população. É preciso impedir a todo custo o exercício da reunião,
potencializada pelas próprias e difíceis condições de vida.
Esses dias assisti a um vídeo em que um jovem negro e
empobrecido portando um fuzil denuncia: "Se o mercado de drogas movimenta
bilhões por ano, quem ganha com ele? Porque, olhem para mim, eu sou um fodido."
O que essa mensagem nos ensina?
Se o uso de entorpecentes, legais ou não, representa um
problema presente em toda a sociedade, ou seja, em todas as classes sociais, por
que, ao fecharmos os olhos e imaginarmos alguém viciado ou traficante, o que
nos vêm à cabeça é justamente a fotografia de um jovem, magro, negro e
favelado? Por que será que, nas mentes de muitos de nós, os bairros
periféricos, onde reside a imensa porção das pessoas que constroem este país,
da doméstica ao pedreiro, são sinônimos de criminalidade, e não de um merecido
e atrasado “obrigado por tudo”?
A autodeclarada "Política de Combate às Drogas"
nada mais é do que uma maneira de justificar para a sociedade o açoite
constante da senzala. Ação contínua e planejada para dificultar a prática da
reunião entre os oprimidos. Por esse motivo é tão comum escutarmos que, nas
favelas, o Estado só chega através da violência policial. "Não chegam os
direitos."
E quem são os policiais? Em sua maioria, pessoas com a
mesma origem periférica e marginalizada. Dividir para governar é a estratégia
do sistema. Pobre contra pobre, comunidade contra comunidade. O homem preto e
favelado que veste a farda da polícia tortura e mata a serviço de quem lucra
bilhões com o massacre de sua própria gente. Por esse motivo, os capitalistas
não estão nem aí com a morte de policiais. Até porque, pela miséria que se
alastra, produzida pela concentração de riqueza em umas poucas mãos, há sempre
muitos outros necessitados de sobrevivência dispostos a substituir os falecidos.
A sujagem cerebral que recebem do alto comando faz com que o favelado fardado
creia que o problema é seu "incorrigível" vizinho, já então observado
como uma espécie inferior de pessoa, um não-humano. Condição que, sem que
perceba, acaba por atribuir a si mesmo.
E quem são os jovens que matam jovens? Pessoas
encurraladas, com perspectivas de vida e de dignidade futura trancafiadas. A
maioria laranjas involuntários do sistema, que se apontam armas e se cospem
fogo antes que sobre tempo para que se entendam como herdeiros iguais da mesma
trama capital.
Em Crateús, cidade do interior cearense, perguntaram a
uns policiais que palestravam sobre segurança pública o que fazer com o “crime
primeiro”. “Há uma grande barragem em fase de conclusão no município. Milhares
de famílias estão sendo neste momento expulsas de suas terras, de suas casas,
de suas histórias. Para onde elas irão? Para cá, para as periferias desta
cidade. E amanhã vamos aplaudir a prisão ou morte de mais uns jovens, quando,
na verdade, o crime primeiro, o causador de todos os outros, está sendo
cometido agora, à plena luz do dia, em total flagrante! Tá vendo só, policial?
O sistema usa vocês, nós, usa todos nós trabalhadores como bucha de canhão.”
Outro dia, enquanto estabelecia uma conversa informal sobre
os problemas sociais sentidos pela maioria da população e suas causas, isso com
um rapaz que no passado praticara alguns assaltos, mostrei-o uma frase do poeta
Bertolt Brecht: "Qual crime maior: assaltar ou fundar um banco?". No
que ele me respondeu: "Se essas ideias de comunismo chegam até nós, o
sistema está perdido."
Boa parte dos
setores médios da sociedade têm verdadeiro pânico da favela por duas razões
básicas. A primeira é ideológica. A classe dominante cria mecanismos para que este
segmento se identifique com o lobo, e não com as ovelhas, rebanho o qual integram.
"Classe média", inclusive, é um termo de distinção em relação à "classe
trabalhadora", a qual se insere também a população moradora das favelas. Assim,
os representantes da classe capitalista são cultuados como símbolos de sucesso
e inspiração, enquanto as pessoas que moram em barracos e lutam por moradia,
por exemplo, são vistas como perigosa ameaça. A segunda razão pode ser
explicada pela fala de uma amiga de um médico, vítima, há uns anos atrás, de
latrocínio na Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro: "Meu amigo foi
vítima de vítimas."
É sobre a parcela da classe trabalhadora que teve
condições de estudar e exercer funções melhores remuneradas, que o rescaldo violento
da violência gerada pelo capitalismo recai em segunda instância. Até porque nunca
vi um megaempresário reclamar por ter tido seu celular roubado. Os problemas
criados por esta classe não chegam até ela. Ao menos não como chegam até nós,
pisoteadas bases da pirâmide social.
O pavor incutido nas vítimas das vítimas existe para que
não se aproximem, para que a base não apóie as lutas advindas da base da base.
Para que se identifiquem com o coiote, e não com as ovelhas, que são. Para que
desejem cegamente o encarceramento em massa, para que não se comovam com a
tortura, com as rajadas de tiros disparadas a esmo pelo Estado, com as invasões
de domicílios sem mandado judicial realizadas à qualquer hora do dia, da noite
ou da madrugada, para que não se sensibilizem com os assassinatos promovidos
cotidianamente contra o povo empobrecido. Enquanto isso, os problemas dos quais
os setores médios tentam se distanciar só aumentam, e os muros e cercas
elétricas se mostram cada dia mais inúteis. A coisa é tão irracional que, se o
problema é a proliferação de armas, por que não concentrar esforços na luta
pelo fechamento das indústrias capitalistas que as produzem? Enfim, o intuito do
sistema é sempre o mesmo: dividir para dominar.
Finalizo esta reflexão dizendo que, em meus 20 anos de
militância construindo o Poder Popular, não encontrei solidariedade mais
profunda, abrangente e verdadeira do que aquela realizada dia a dia, hora a
hora, minuto a minuto nas comunidades periféricas, seja na cidade ou no campo.
O capitalismo não é onipotente. Onde existe injustiça, vive e resiste seu
antagonista, a humanidade em atos.
O desafio, então, segue se reunir, se reunir, se reunir! E
àquelas e aqueles que sonham com um mundo outro, me refiro à militância
anticapitalista (seguidora de Jesus de Nazaré, anarquista, socialista,
comunista...), cabe somente encontrar formas de cair para dentro. Até porque,
como sabemos, toda reunião é permeada por ideologias, e nem todas promovem o
necessário e vital caminhar para a libertação.
Não compete a revolucionários e revolucionárias
o crime covarde do dedo em riste do julgamento à distância. É preciso trabalhar
as bases para unificar a luta contra o capitalismo, inimigo comum de toda a
humanidade. Pois somente assim, no dia em que o morro descer e não for
carnaval, celebraremos, toda gente junta, o samba alegre e imatável de um novo
amanhã.