domingo, 15 de setembro de 2024

RAIMUNDO CORAGEM


 

Por Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA

 

A fazenda que pretendíamos ocupar estava abandonada há anos. O grupo proprietário, muito rico, priorizava outros investimentos e ali só especulava. Ainda assim, entrar naquela terra mexia nas entranhas das famílias agricultoras. Mesmo entregue à ferrugem e, por lei, devendo ser destinada à Reforma Agrária, a grande propriedade representava um temido império na região.

Combinamos que, quem, por força maior, não pudesse comparecer ao ato da ocupação, avisasse via mensagem de celular o quanto antes à coordenação. Alguns informaram, alegando adoecimento. Sem dar nenhuma notícia, seu Raimundo apareceu no terceiro dia de terra ocupada. Aproximou-se meio encabulado, escutou um pouco a conversa e pediu licença para falar.

“Eu não vim por medo”, disse.

“Eu não gosto de mentir”, continuou. As lágrimas escorriam pelo rosto marcado daquele camponês de quase 70 anos de idade.

“A pessoa só deve mentir se for para se defender. O que não é o caso. Eu não gosto de mentir. Eu não vim por medo”, repetiu. Seu Raimundo se tremia.

Depois de mais de um ano de convivência militante e uma carrada de atribulações enfrentadas juntos, arrisco a dizer que não foi somente uma questão de caráter o que levou seu Raimundo a confessar seus sentimentos a pessoas até pouco tempo desconhecidas.

Ele, que poderia ter inventado uma doença ou qualquer outra mentira para justificar sua falta, optara pela verdade, ainda que a justificativa gerasse risos ou não fosse bem aceita pela comunidade como “motivo de força maior”. Afinal de contas, medo todo mundo tinha.

As organizações da classe trabalhadora que defendem uma transformação estrutural da sociedade reduziram seu contato com as necessidades do povo a momentos pontais de agitação. Uma panfletagem aqui, uma atividade cultural ali... Ações importantes, mas insuficientes para construir a confiança necessária. Apesar de praticamente todas diagnosticarem a ausência do Trabalho de Base como uma das principais causas de seus declínios ou vulnerabilidades, poucas e raras são as vezes que ele acontece. Por qual razão? Carência de planejamento, de disponibilidade? Ou será que o que nos falta mesmo é coragem?

         Já seu Raimundo, daquele dia em diante, não perdeu mais nenhuma atividade. Na comunidade, ele ganhou novo sobrenome: Coragem. Raimundo Coragem. Coragem, não por ter participado da heroica resistência contra jagunços armados, como viria a ocorrer dias depois. Coragem por ter tido a coragem de falar a verdade.

domingo, 8 de setembro de 2024

DO QUE NOS ACUSAM OS SENHORES PROPRIETÁRIOS. O QUE DIZEMOS NÓS, TRABALHADORES


   Tomamos conhecimento de um documento emitido pela família proprietária da fazenda Baquit ao senhor juiz da comarca de Jaguaruana-CE. Em linguagem bastante impositiva, dando ordens como se fossem patrões do judiciário, os autores exigem o imediato despejo das famílias da Ocupação Gregório Bezerra II.

   Eles dizem que transitamos na fazenda e entramos em “áreas produtivas”. Perguntamos: A que produtividade mesmo os senhores se referem: a de calangos ou a de ferrugens, que corroem a estrutura há tempos abandonada, como comprovam vídeos por nós apresentados?

   Senhores, não estamos construindo “barracos”, como alegam. Reiniciamos foi o processo de edificação de nossas casas, antes interrompido pela chegada de jagunços encapuzados e armados, que nos ameaçaram e ameaçam, os senhores sabem bem a mando de quem. Construímos casas porque aqui é nosso lar. Os senhores enxergam a terra como fonte de lucro, a devastam, envenenam, depois a desprezam, por isso longe de morarem nela. Para nós, ela é fonte de vida, de dignidade. A gente cuida dela enquanto ela cuida da gente. Lembram das frutas livres de agrotóxicos que os senhores compram nos supermercados para alimentarem suas famílias? Somos nós quem as produzimos.

   No documento, os senhores também nos acusam de “arregimentar” pessoas. Lhes perguntamos: Existe força de atração maior do que as cercas da opressão que os senhores nos impõem? São as suas cercas que fazem chegar em todas as nossas reuniões famílias novatas querendo ingressar na luta pela terra e por dignidade. De onde elas surgem? Por que elas aparecem? E olha que não está sendo nada fácil. Os 50 jagunços enviados na madrugada do dia 26 não derramaram sangue por obra de milagre. Quem gostaria de ver seu filho se tremendo ou desmaiando ante todo aquele terror? Ver trabalhadores de mãos calejadas sendo postos de joelhos, humilhados, também não é nada fácil para quem o sangue corre nas veias. Mas ainda assim chegam novas famílias todos os dias, “arregimentadas”, como dizem os senhores, pela lei maior da necessidade.

   “Arregimentadas” são outras tantas e muitas pessoas que, ao tomarem conhecimento do que estamos passando, começam a nos apoiar. Elas são de todo canto do Brasil. A verdade não conhece fronteiras, senhores. Todos os dias, todos!, recebemos visitas. São comunidades, sindicatos, estudantes, professores, padres, freiras e por aí vai. Fora as mensagens. Temos que estar com os celulares sempre de prontidão, porque a todo instante nossos amigos e amigas nos perguntam como estão as coisas. Sim, senhores, muitas destas pessoas, arregimentadas pela verdade e por um sentimento genuíno de justiça, estarão com a gente até o final, custe o que custar.

   Em outro trecho do documento os senhores chamam nossa ocupação de “esbulho”. Leiam bem: aceitem ou não, OCUPAR É DIREITO NOSSO! A grande propriedade que não cumpre sua função social deve ser desapropriada para fins de Reforma Agrária. Tá na Constituição Federal! Esbulho é quando alguém tenta se beneficiar em proveito próprio, quando invade para enriquecer. Neste caso, o nome é “invasão” mesmo! Invasão que sofremos continuadamente desde abril de 1500. Invasão como a dos jagunços, uma criminosa e covarde ilegalidade para tentar burlar e impedir a garantia de nosso direito constitucional. 

   Os senhores invertem as coisas. Também pudera, nas suas cabeças o lucro está acima da vida. Mas pode ser diferente. Tomara um dia tudo ser diferente! Entre nós e os senhores existe uma coisa que nos impede de viver como irmãos e irmãs que somos. Essa coisa se chama propriedade privada! Ela foi implantada em todos os lugares, e é controlada por poucas mãos. É ela quem faz com que trabalhadores assim como nós, sem propriedade, se submetam por um mísero ganha-pão ao papel criminoso e à chefia covarde de jagunços profissionais, na defesa de interesses opressores. Como disse uma de nossas crianças: “Jagunços, amanhã seu patrão fará contra vocês o que agora fazem contra a gente”. A propriedade é a causa da cegueira que leva os senhores a crerem que mais vale sangue inocente derramado do que tê-la em comunhão.

   Mas pode ser diferente. Tomara um dia tudo ser diferente! Da nossa parte, lutaremos até o fim para que isso aconteça.

  


Ocupação Gregório Bezerra II – OPA

Jaguaruana-CE, 06 de setembro de 2024

 

terça-feira, 16 de julho de 2024

QUANTO VALE UMA VIDA?

 


Coordenação da Organização Popular - OPA

Lutamos tanto em defesa da democracia, mas já passa da hora de nos perguntarmos: Que democracia?

            Há três dias famílias camponesas Sem Terra do município de Jaguaruana, interior do Ceará, encontram-se cara a cara, acuadas por jagunços armados e encapuzados. Há três dias, a situação é amplamente divulgada, autoridades acionadas e, se não é a solidariedade que brota dos quatro cantos do país por setores populares, o que seria de nós? Porque até aqui nada nos chegou das principais instituições do dito “Estado democrático e de direito”.

            Já noticiamos, e todas as pessoas da região sabem bem, que a fazenda ocupada pelos trabalhadores rurais, propriedade da família do deputado estadual Francisco Osmar Diógenes Baquit (PDT), encontra-se há anos abandonada, sem cumprir sua função social. Até a Constituição Federal (Art. 184) diz que, em tal caso, a terra deve ser desapropriada para fins de Reforma Agrária. A lei é infringida impunemente, e à luz do dia, uma, duas, três... as vezes que forem necessárias, se é para favorecer grandes empresários. Será que aos ricos tudo é permitido?

            Em meio ao conflito, as famílias chegaram a apresentar para o chefe do grupo de jagunços um documento comprovando que existe uma negociação iniciada entre o Instituto de Terras do Ceará (IDACE) e a família Baquit, inclusive com um laudo técnico já produzido. O processo está paralisado por divergência nos valores.

            O povo não quer guerra. Quer terra para plantar alimentos saudáveis. Quer sossego, dignidade. Um dos grandes problemas que as milhões de famílias camponesas e o povo em geral enfrentam no Brasil, além da terra concentrada nas mãos de poucos e as consequências rurais e urbanas deste histórico e grave problema social, é que o Estado e seus governos isentam de taxas e liberam, aos bocados, agrotóxicos que destroem o meio ambiente e envenenam a população; entregam aos capitalistas do agronegócio quase 90% de todo dinheiro público utilizado na agricultura, arrecadado dos impostos sobre o suor da classe trabalhadora. Sendo assim, martela em nossas mentes a indagação: Qual é mesmo a real distância existente entre a pólvora dos jagunços e o químico lançado pelas grandes empresas pulverizadoras?

Se há um impasse na negociação sobre o preço a se pagar pela terra, bem da natureza que deveria servir a todas as pessoas gratuitamente, repetimos a pergunta que fizemos outro dia: Quanto vale uma vida?

Quanto vale uma vida, governador?

Quanto vale uma vida, deputados e deputadas estaduais que se dizem do lado do povo?

Quanto vale uma vida, superintendente estadual do INCRA? Há mais de mês estamos insistindo por uma audiência com o senhor.

Pronunciem-se! Depois de tanto ser anunciado, de nada adiantará lamentar o sangue derramado no altar da hipocrisia. Se há um preço que a História sempre fez questão de cobrar, é sobre aqueles e aquelas que, no exercício do poder que lhes foi confiado, optaram pelo silêncio cúmplice com os inimigos do povo.

 

RETOMADA GREGÓRIO BEZERRA RESISTE!


domingo, 23 de junho de 2024

DEFENDER A CASA COMUM: CONSTRUIR A RETOMADA ANCESTRAL.


 

Robson de Sousa Moraes

(Geógrafo, Professor da UEG)

robson.moraes@ueg.br

 

 

A Terra é nossa Casa Comum, um lar compartilhado por todas as formas de vida. Proteger e preservar o equilíbrio ecológico é essencial para garantir um ambiente saudável. Cada ação em defesa da natureza é um passo em direção à harmonia com o planeta. Resgatar e valorizar os conhecimentos e práticas dos nossos antepassados é crucial. Eles nos ensinam formas de viver em equilíbrio com a natureza e a construir comunidades mais fortes e integradas a seus respectivos ecossistemas.

Em um contexto da mundialização do Modo de Produção Capitalista, é crucial lembrar e valorizar as tradições e culturas que moldaram nossa identidade. A Retomada Ancestral surge como uma exigência essencial para resgatar e preservar os conhecimentos e práticas dos nossos antepassados, especialmente dos povos indígenas e de diversas comunidades tradicionais, que possuem uma relação íntima, respeitosa e integrada com a natureza. A Construção da Retomada Ancestral, em defesa da Casa Comum, é parte do amplo movimento de superação da atual crise socioambiental. Olhar para o passado dos povos que habitavam e habitam o território nacional, compreendendo que nestas sociabilidades não capitalistas, estão formas de organização social que podem basilar a chamada “transição agroecológica” para além dos limites da sociedade produtora e consumidora de mercadorias. Ao valorizar nossas raízes, fortalecemos nossas identidades coletiva e promovemos um mundo onde a diversidade cultural é respeitada e preservada.

Não podemos esperar que as mudanças urgentes e necessárias venham daqueles que se enriquecem com o atual estado de degradação socioambiental. As instituições que compõem o sistema capitalista representativo burguês, estão completamente comprometidas com a manutenção de privilégios, reproduzem as desigualdades e a despossessão ampliada da natureza. A verdadeira mudança vem do povo organizado. Quando nos organizamos e agimos em conjunto, temos a capacidade e o Poder de transformar a sociedade e lutar por um mundo mais justo e igualitário. O Poder Popular é a chave para a transformação social. Não podemos esperar por mudanças vindas de cima. A Ação direta é necessária para confrontar injustiças e proteger nosso planeta, combatendo as desigualdades e a concentração de riqueza.

A ação direta envolve a intervenção ativa das pessoas em situações de injustiça, sem a mediação de autoridades ou instituições formais. Pode incluir protestos, ocupações, greves, bloqueios e outras formas de insatisfação que visam confrontar diretamente as variadas fontes de opressão. Faz-se necessário desafiar a passividade, recuperar a iniciativa de combate superando a imobilizante combinação entre táticas e estratégias defensivas. A ação direta quebra esse ciclo, mostrando alternativas concretas de lutas e demostrando objetivamente que justiça socioambiental pode ser conquistada por meio da mobilização ativa. É um lembrete constante de que os direitos e liberdades não são concedidos gratuitamente, mas conquistados através de luta organizada e determinação.

Estamos vivendo uma crise climática sem precedentes. A inação não é uma opção. Precisamos agir agora para mitigar os efeitos devastadores das mudanças climáticas provocadas por uma estrutura econômica e social que visa a obtenção, sem limites, de lucratividade através da exaustão, morte e extermínio de diversas formas de vida. A organização popular é fundamental para enfrentar os desafios que nos cercam, agregando Trabalhadoras e Trabalhadores (urbanos e rurais), os despossuídos, a juventude de periferia, indígenas e quilombolas, bem como todos e todas que vislumbram a emancipação humana e a existência de uma alternativa de luta capaz de articular a contraofensiva popular em defesa da Casa Comum. Estudar, planejar, organizar e agir coletivamente para construir o mundo que queremos. É hora de uma Revolução Popular, uma mudança radical em como nos relacionamos com o planeta e uns com os outros. Somente através da organização popular poderemos alcançar justiça ambiental e social de forma duradoura e efetiva.

 

 

Cidade de Goyaz, junho de 2024

sexta-feira, 21 de junho de 2024

POR QUE REUNIÃO NA FAVELA É ALGO TÃO PERIGOSO PARA O SISTEMA?

 


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

        Reza a lenda que, no Ceará, um conhecido megaempresário ordena a seus gerentes: "Se tiver dois ou três trabalhadores conversando, separem-nos o mais rapidamente, porque é motim."

        Na Bíblia, algo parecido é atribuído ao revolucionário de Nazaré, ainda que em sentido totalmente inverso: "Se estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estarei presente."

        O Manifesto do Partido Comunista, elaborado em meados de 1800 para auxiliar a luta da classe trabalhadora por sua libertação, é concluído com um "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!"

        É bem famosa também a forma que os invasores-colonizadores utilizaram para guerrear e assaltar os povos nativos do território que depois viria a ser chamado de Brasil: dividir para dominar, jogar oprimido contra oprimido.

        A reunião é o princípio mais básico e poderoso para transformações de realidades, sobretudo quando realizada por pessoas que padecem por problemas comuns, como é o caso da população que mora em favelas no Brasil.

        A arquitetura espremida das comunidades periféricas, com o amontoado de casas coladas umas nas outras, faz com que, de uma maneira bem particular, toda a gente viva em permanente reunião. Se falta água em casa, basta uma fala mais alta do vizinho para saber que lá a água falta também. E se há comunicação que denuncia a negação de direitos, há possibilidades concretas de identificação de suas causas e de organização para resolvê-las. Um grande risco, portanto, para a dominação capitalista, autora da miséria que faz da vida de milhões uma luta contínua pela sobrevivência.

        Daí que, para manterem sua ordem desigual funcionando, os banqueiros e megaempresários, donos reais e não eleitos do poder, recorrem a uma política de violência sem fim contra a classe que se constitui a imensa maioria da população. É preciso impedir a todo custo o exercício da reunião, potencializada pelas próprias e difíceis condições de vida.

        Esses dias assisti a um vídeo em que um jovem negro e empobrecido portando um fuzil denuncia: "Se o mercado de drogas movimenta bilhões por ano, quem ganha com ele? Porque, olhem para mim, eu sou um fodido." O que essa mensagem nos ensina?

        Se o uso de entorpecentes, legais ou não, representa um problema presente em toda a sociedade, ou seja, em todas as classes sociais, por que, ao fecharmos os olhos e imaginarmos alguém viciado ou traficante, o que nos vêm à cabeça é justamente a fotografia de um jovem, magro, negro e favelado? Por que será que, nas mentes de muitos de nós, os bairros periféricos, onde reside a imensa porção das pessoas que constroem este país, da doméstica ao pedreiro, são sinônimos de criminalidade, e não de um merecido e atrasado “obrigado por tudo”?

         A autodeclarada "Política de Combate às Drogas" nada mais é do que uma maneira de justificar para a sociedade o açoite constante da senzala. Ação contínua e planejada para dificultar a prática da reunião entre os oprimidos. Por esse motivo é tão comum escutarmos que, nas favelas, o Estado só chega através da violência policial. "Não chegam os direitos."

        E quem são os policiais? Em sua maioria, pessoas com a mesma origem periférica e marginalizada. Dividir para governar é a estratégia do sistema. Pobre contra pobre, comunidade contra comunidade. O homem preto e favelado que veste a farda da polícia tortura e mata a serviço de quem lucra bilhões com o massacre de sua própria gente. Por esse motivo, os capitalistas não estão nem aí com a morte de policiais. Até porque, pela miséria que se alastra, produzida pela concentração de riqueza em umas poucas mãos, há sempre muitos outros necessitados de sobrevivência dispostos a substituir os falecidos. A sujagem cerebral que recebem do alto comando faz com que o favelado fardado creia que o problema é seu "incorrigível" vizinho, já então observado como uma espécie inferior de pessoa, um não-humano. Condição que, sem que perceba, acaba por atribuir a si mesmo.

        E quem são os jovens que matam jovens? Pessoas encurraladas, com perspectivas de vida e de dignidade futura trancafiadas. A maioria laranjas involuntários do sistema, que se apontam armas e se cospem fogo antes que sobre tempo para que se entendam como herdeiros iguais da mesma trama capital.

        Em Crateús, cidade do interior cearense, perguntaram a uns policiais que palestravam sobre segurança pública o que fazer com o “crime primeiro”. “Há uma grande barragem em fase de conclusão no município. Milhares de famílias estão sendo neste momento expulsas de suas terras, de suas casas, de suas histórias. Para onde elas irão? Para cá, para as periferias desta cidade. E amanhã vamos aplaudir a prisão ou morte de mais uns jovens, quando, na verdade, o crime primeiro, o causador de todos os outros, está sendo cometido agora, à plena luz do dia, em total flagrante! Tá vendo só, policial? O sistema usa vocês, nós, usa todos nós trabalhadores como bucha de canhão.”

        Outro dia, enquanto estabelecia uma conversa informal sobre os problemas sociais sentidos pela maioria da população e suas causas, isso com um rapaz que no passado praticara alguns assaltos, mostrei-o uma frase do poeta Bertolt Brecht: "Qual crime maior: assaltar ou fundar um banco?". No que ele me respondeu: "Se essas ideias de comunismo chegam até nós, o sistema está perdido."

        Boa parte dos setores médios da sociedade têm verdadeiro pânico da favela por duas razões básicas. A primeira é ideológica. A classe dominante cria mecanismos para que este segmento se identifique com o lobo, e não com as ovelhas, rebanho o qual integram. "Classe média", inclusive, é um termo de distinção em relação à "classe trabalhadora", a qual se insere também a população moradora das favelas. Assim, os representantes da classe capitalista são cultuados como símbolos de sucesso e inspiração, enquanto as pessoas que moram em barracos e lutam por moradia, por exemplo, são vistas como perigosa ameaça. A segunda razão pode ser explicada pela fala de uma amiga de um médico, vítima, há uns anos atrás, de latrocínio na Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro: "Meu amigo foi vítima de vítimas."

        É sobre a parcela da classe trabalhadora que teve condições de estudar e exercer funções melhores remuneradas, que o rescaldo violento da violência gerada pelo capitalismo recai em segunda instância. Até porque nunca vi um megaempresário reclamar por ter tido seu celular roubado. Os problemas criados por esta classe não chegam até ela. Ao menos não como chegam até nós, pisoteadas bases da pirâmide social.

        O pavor incutido nas vítimas das vítimas existe para que não se aproximem, para que a base não apóie as lutas advindas da base da base. Para que se identifiquem com o coiote, e não com as ovelhas, que são. Para que desejem cegamente o encarceramento em massa, para que não se comovam com a tortura, com as rajadas de tiros disparadas a esmo pelo Estado, com as invasões de domicílios sem mandado judicial realizadas à qualquer hora do dia, da noite ou da madrugada, para que não se sensibilizem com os assassinatos promovidos cotidianamente contra o povo empobrecido. Enquanto isso, os problemas dos quais os setores médios tentam se distanciar só aumentam, e os muros e cercas elétricas se mostram cada dia mais inúteis. A coisa é tão irracional que, se o problema é a proliferação de armas, por que não concentrar esforços na luta pelo fechamento das indústrias capitalistas que as produzem? Enfim, o intuito do sistema é sempre o mesmo: dividir para dominar.

        Finalizo esta reflexão dizendo que, em meus 20 anos de militância construindo o Poder Popular, não encontrei solidariedade mais profunda, abrangente e verdadeira do que aquela realizada dia a dia, hora a hora, minuto a minuto nas comunidades periféricas, seja na cidade ou no campo. O capitalismo não é onipotente. Onde existe injustiça, vive e resiste seu antagonista, a humanidade em atos.

        O desafio, então, segue se reunir, se reunir, se reunir! E àquelas e aqueles que sonham com um mundo outro, me refiro à militância anticapitalista (seguidora de Jesus de Nazaré, anarquista, socialista, comunista...), cabe somente encontrar formas de cair para dentro. Até porque, como sabemos, toda reunião é permeada por ideologias, e nem todas promovem o necessário e vital caminhar para a libertação.

        Não compete a revolucionários e revolucionárias o crime covarde do dedo em riste do julgamento à distância. É preciso trabalhar as bases para unificar a luta contra o capitalismo, inimigo comum de toda a humanidade. Pois somente assim, no dia em que o morro descer e não for carnaval, celebraremos, toda gente junta, o samba alegre e imatável de um novo amanhã.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Brigada Popular de Saúde



Por Jerffson Fei, membro da comissão de comunicação da OPA na Ocupação Carlos Marighella.


Nasce a semente da Brigada Popular de Saúde Carlos Marighella!

Nasce em contexto de um grau imenso de doença mental em nossa comunidade. Nasce como o vento, que há tempos é como milagre diante de tanto caos sócio-ambiental e humano.

E na afirmação da necessidade de se organizar ante as dificuldades impostas contra o Sistema Único de Saúde, sempre superlotados.

A demanda pela saúde é extrema! E essa cura não vem apenas deste setor da sociedade. Aprendemos ainda mais na semana de trabalhos para a formação da Brigada que o remédio para tantas enfermidades se encontra no modelo de vida que levamos. Atualmente, só nos adoece. A falta de acesso básico à alimentação, lazer, cultura, arte, à moradia digna e por aí vai.

Este ponto relata um dos pontos principais da Brigada Popular de Saúde, que nos move à solidariedade entre o curador e os que buscam a cura, seja a cura imediata de si ou a cura coletiva para avançar nesta defesa.

E não dá pra deixar de lembrar que estamos a falar de mais um direito negado em sua essência, quando passamos meses em uma fila de espera por um exame médico, quando somos jogados de um posto para outro, e quando temos que sair pela madrugada para pegar filas imensas para uma única marcação.

E é neste contexto que a Brigada traz seu segundo ponto essencial e vital para a comunidade: a importância de se organizar para buscar soluções que não vêm do agressor (modelo do sistema).

Não dá pra deixar de falar das dificuldade dos profissionais, que ainda são poucos neste setor. Além da demanda imensa de atendimentos, onde nos colocam a todo momento em confronto com o trabalhador da saúde, como se ele fosse o culpado do caos dentro dos espaços que buscamos a cura.

E o terceiro ponto , um diagnóstico da saúde de nossa comunidade, com isso vemos qual a importância de conseguirmos perceber o que nos adoece no contexto atual.

As doenças são basicamente as mesmas. E vemos o grau de avanço da falta de direitos e o racismo ambiental escancarando.

Neste sistema, saúde é mercadoria.  Nossos corpos existem para gerar lucro.

Estamos falando de uma fábrica de produzir doenças. Quanto mais doentes, mais lucro.

O lobby farmacêutico é um dos mais ricos do mundo! Não à toa, temos polos farmacêuticos em todo território brasileiro, até na Amazônia.

Temos uma sociedade DOPADA com químicos legais, mas podemos plantar nesta Casa Comum e se utilizar da cura das plantas benzedeiras, chás... E que a ciência moderna também se encontre dentro deste processo.

Ficamos firmes no compromisso de manter esta chama viva!

Agradecer imensamente ao camarada Wladimir Nunes e à camarada Mônica Lima, que com muito empenho firmaram a bandeira preventiva de dias melhores que virão.

E um salve aos hermanos do Partido Comunista Brasileiro, pela ativa parceria!

 

CÁPSULAS DE BALAS E DESTRUIÇÃO CRIMINOSA: JACINTA SOUSA RESISTE!

 



Equipe de Comunicação da OPA.

 

            A Ocupação Jacinta Sousa conta com a participação de aproximadamente 50 famílias, a maioria nativa, originária de Majorlândia e imediações, no município de Aracati-CE. São descendentes de pessoas que perderam suas terras dentro do contexto dos sucessivos e violentos processos de colonização-invasão empresarial. A forma que encontraram de resistir no presente foram ocupando e pegando de volta uma das terras tomadas de seus ancestrais.

            A retomada da terra vem ocorrendo de forma gradual numa área então completamente abandonada. No estágio atual, as famílias construíram um barracão coletivo, com cozinha, e diariamente se revezam na preparação do espaço para a edificação das futuras casas e quintais produtivos, enquanto o processo de titulação tramita no Judiciário e no IDACE.

            Desde a construção do barracão e cozinha coletivos, a comunidade vem sofrendo com frequentes ameaças e tentativas de intimidação. Um conhecido policial do Raio, à paisana, esteve no local; depois foi a vez de uma mulher, que ligou para um membro da coordenação da OPA, declarando-se representante de um grupo norueguês, supostamente proprietário do terreno. Em ambos os casos, foi dito aos ameaçadores que procurassem os meios legais, que apresentassem os documentos que alegam possuir...

            Apesar de expressarem insistentemente que não é guerra o que querem, mas terra, terra para criar suas crianças e viver com dignidade, as ameaças contra a comunidade só se intensificam. Na madrugada de sábado para domingo, invasores atearam fogo e destruíram o barracão e a cozinha, e dez cápsulas de munição foram encontradas entre os escombros. Testemunhas confirmam ter ouvido sons de tiros.

            Enquanto cobramos uma resposta imediata das autoridades, reafirmamos que não pararemos de lutar em defesa de nossa Casa Comum, como o Papa Francisco chama a vida no planeta. Porque a Terra é para todas as pessoas, e não somente para algumas. Sabemos que é com união e luta que conquistaremos nossos tetos de telha e faremos de nosso teto de nuvem um mundo onde cercas e balas não serão mais capazes de impedir a retomada da dignidade há tempos usurpada.

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Insta: @opa_organizacaopopular





RAIMUNDO CORAGEM

  Por Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA   A fazenda que pretendíamos ocupar estava abandonada há anos. O grupo p...