quarta-feira, 20 de julho de 2022

A “MATÉRIA”-PRIMA DO ARDOR REVOLUCIONÁRIO

 


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

Em 1917, Nossa Senhora de Fátima foi apresentada ao mundo por setores do poder instituído como uma ferrenha anticomunista. Em 2008, em Crateús, pequena cidade do interior cearense, sua devoção encorajou famílias sem teto a se organizarem, ocuparem um latifúndio urbano e resistirem a todo tipo de repressão da parte do Estado capitalista.

            Se a Bíblia é utilizada como instrumento de dominação em templos, suntuosos ou não, e no Congresso Nacional, na comunidade Nossa Senhora de Fátima, em Crateús, ela desperta e anima consciências de trabalhadores e trabalhadoras para a luta, a prática da solidariedade e a construção de um mundo de vida plena para todas as pessoas.

A crença nas entidades guerreiras de um terreiro de umbanda, que instiga pessoas a resistir aos egoísmos, a buscar superar coletivamente adversidades, a sentir a dor do próximo como sua, deve não somente ser respeitada, mas acolhida como parte da espiritualidade coletiva da construção do Poder Popular.

A cartilha “Organize-se e Lute: A proposta da Organização Popular” descreve espiritualidade ou mística como a força invisível e imensurável que nos impulsiona à defesa da vida, que nos converte para o projeto revolucionário que assumimos.

Que importa para a superação de uma estrutura social injusta se uma companheira é levada a agir por compaixão cristã ou por inspiração em alguma revolucionária marxista? Afinal de contas, o mundo não se divide entre crentes e não crentes, mas entre exploradores e explorados, opressores e oprimidos.  Na construção do Poder Popular, aprendemos que valores são valores, independentemente de suas origens.

É o desvalor, que conduz ao frio glacial da cruel e cúmplice indiferença, que deve ser combatido, tenha ele o adorno que tiver.

Que o ardor revolucionário queime, seja lá qual for sua “matéria”-prima!

sexta-feira, 1 de julho de 2022

BELO MONTE E O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO



 Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

            O Acampamento Belo Monte nasceu na zona rural de Jaguaruana-CE no dia 17 de abril de 2007, quando quase cem famílias camponesas entraram num latifúndio abandonado para fazer valer o direito a um pedaço de chão de onde pudessem tirar seu sustento.

            As famílias se arrancharam num velho galpão – mulheres, homens, crianças, idosos. Havia muitos marimbondos. Vez em quando alguém era ferroado. A ocupação ocorreu durante a madrugada e, logo no dia seguinte, apareceram uns caras com fama de pistoleiro a espreitar dia e noite.

            Num dia, o acampamento amanheceu sem água. “Os capangas cortaram os canos”, disseram. O que fazer? Rapidamente organizou-se uma marcha e, de repente, as famílias estavam frente à frente com os cabras. Sem muita conversa, a encanação foi desobstruída, gritaram-se palavras de ordem e o povo Sem Terra retornou ao galpão com a água.

Apesar dos apoios, os recursos escasseavam. Numa noite, faltou com o que fazer a janta. Uma criança chorou de fome. A despensa da cozinha coletiva estava vazia. E agora? “As famílias já haviam partilhado o que possuíam. E qualquer um que saia neste horário à procura de alimento tá arriscado a ser atocaiado nestas estradas escuras.” A cidade ficava a uns quinze quilômetros.

A militância convoca uma reunião com todo o acampamento. Alguns, já deitados para dormir, se levantam para participar. Foi aí que a camarada H. L., coordenadora em exercício e militante cheia de fé em Jesus e na capacidade de organização e de luta da classe trabalhadora, fez uma potente reflexão sobre partilha, tão viva quanto o testemunho militante demonstrado naquelas semanas.

Quando concluiu, as famílias, uma por uma, começaram a escavacar seus poucos pertences. Surpreendentemente, apareceu meio pacote de bolacha, depois um tanto de farinha, um resto de frango, mais uns biscoitos, um pouquinho de açúcar, café... Eu sei que, ao final, todos e todas jantaram e ainda se guardou uma considerável sobra na despensa.

Simplesmente incrível: o milagre da multiplicação vem da partilha! Na sequência da militância, descobri que o mesmo fenômeno acontece todos os dias entre o povo explorado e oprimido. Sem esta solidariedade entre iguais, a sobrevivência seria impossível e a vida apagada de esperança.

        Agora, pensando cá comigo, imagina quando partilharmos algo mais do que as sobras do sistema! Partilhar a esperança ativa e fazer como as famílias camponesas fizeram quando os capangas cortaram a água: se organizar, ir lá e pegar de volta. Imagina quando pegarmos de volta o todo social! Não haverá mais criança chorando de fome nem cercas separando a classe trabalhadora dos frutos de seu trabalho; a mãe natureza será, enfim, desencarcerada. Este milagre tem nome, chama-se Revolução.