domingo, 5 de junho de 2022

“NÃO SOMOS COITADOS”

                                       

 Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

Quem teve a oportunidade de conhecer de perto a Ocupação Carlos Marighella, em Fortaleza-CE, nascida da necessidade, no auge da pandemia, sentiu a bravura das famílias lhe penetrar e contagiar o espírito com um ímpeto de entrega plena à luta e suas consequências.

Foram seis tentativas de despejo nos seis primeiros meses de existência. O exercício do Poder Popular, em múltiplos aspectos, cimentou em todos e todas – comunidade, militância, apoiadores – uma entrega total e verdadeira à conquista dos objetivos traçados. “Se forem nos despejar, podem mandar os oitenta e cinco caixões, porque só saímos de lá mortos”, falou a companheira Márcia ao prefeito da cidade.

A companheira Bolinha, uma das ocupantes, em audiência com secretários dos governos, declarou: “Não somos coitados. Somos gente, e como gente queremos ser tratados”.

Na tarde da véspera da sexta tentativa de despejo, pós-eleições, portanto, mais provável do Estado vir com todo seu aparato repressor, tivemos uma assembleia com as famílias da Marighella. Batemos a real, inclusive sobre o risco de morte, e depois perguntamos à cada pessoa, uma por uma, se queria o aluguel social – ideia da prefeitura – ou se queria resistir. “O que decidirem, estaremos com vocês”, dissemos. As duas primeiras pessoas se pronunciaram pelo aluguel social. Seu Cirino, idoso, que no começo da ocupação constantemente ressaltava que não era bom de briga, que “não aguentava peia” e, portanto, dava a entender que, caso a polícia chegasse, ele não permaneceria, levanta a mão e se inscreve:

“Companheiros, não chegamos até aqui para desistir. Minha opinião é a gente ficar unido até o fim. Dê no que der.”

Márcia olhou para os filhos, que brincavam envolta, e falou:

“Eu refleti muito de ontem para hoje. Nem dormi direito. Pensei nos meus filhos, no risco deles se machucarem, pensei no futuro e no sonho que tenho de dar um lar para eles, uma vida melhor... E minha decisão é que lutemos, minha decisão é pela resistência”, e desabou em lágrimas.



        Após estes dois posicionamentos, todos os demais escolheram resistir, inclusive as duas companheiras que primeiramente haviam optado pelo aluguel social. A partir daí, nos preparamos para tudo. A Marighella chegou a mandar um recado para as forças da repressão:

“Não queremos guerra. Queremos terra. Mas saibam que, se vierem, vai ser meio a meio.”

Ao final, a repressão veio, mas não se efetivou. Conquistamos a terra e os desafios ganharam outras dimensões.

A classe explorada e oprimida, pela condição de exploração e opressão a que é cotidianamente submetida, é necessariamente aguerrida, combativa. Uma exigência à própria sobrevivência. Não deve ser tratada como coitada, incapaz, fraca. Qualquer solidariedade prestada é bom que venha junto com este reconhecimento e valorização: “Somos explorados e oprimidos, não coitados”.

A classe que edifica o mundo, mesmo que ainda não à sua imagem e semelhança, não pode ser uma coitada. Ela é coitadizada, desumanizada pela ideologia dos exploradores e opressores. Nossa missão militante, portanto, não é amansar sua combatividade inata, mas contribuir para canalizá-la para a organização e para a luta, para a identificação do inimigo comum, para avançar, e recuar quando necessário, para a construção da superação do sistema que explora e oprime. E só é possível cumprir esta missão estando junto. À distância, bons conselhos, belos discursos e enfáticas convocatórias virtuais só entulham palavras no rol da cumplicidade, seja ela ingênua ou dissimulada.

            Viva Marighella!


* Texto originalmente publicado em CEBs do Brasil.

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