domingo, 15 de setembro de 2024

RAIMUNDO CORAGEM


 

Por Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA

 

A fazenda que pretendíamos ocupar estava abandonada há anos. O grupo proprietário, muito rico, priorizava outros investimentos e ali só especulava. Ainda assim, entrar naquela terra mexia nas entranhas das famílias agricultoras. Mesmo entregue à ferrugem e, por lei, devendo ser destinada à Reforma Agrária, a grande propriedade representava um temido império na região.

Combinamos que, quem, por força maior, não pudesse comparecer ao ato da ocupação, avisasse via mensagem de celular o quanto antes à coordenação. Alguns informaram, alegando adoecimento. Sem dar nenhuma notícia, seu Raimundo apareceu no terceiro dia de terra ocupada. Aproximou-se meio encabulado, escutou um pouco a conversa e pediu licença para falar.

“Eu não vim por medo”, disse.

“Eu não gosto de mentir”, continuou. As lágrimas escorriam pelo rosto marcado daquele camponês de quase 70 anos de idade.

“A pessoa só deve mentir se for para se defender. O que não é o caso. Eu não gosto de mentir. Eu não vim por medo”, repetiu. Seu Raimundo se tremia.

Depois de mais de um ano de convivência militante e uma carrada de atribulações enfrentadas juntos, arrisco a dizer que não foi somente uma questão de caráter o que levou seu Raimundo a confessar seus sentimentos a pessoas até pouco tempo desconhecidas.

Ele, que poderia ter inventado uma doença ou qualquer outra mentira para justificar sua falta, optara pela verdade, ainda que a justificativa gerasse risos ou não fosse bem aceita pela comunidade como “motivo de força maior”. Afinal de contas, medo todo mundo tinha.

As organizações da classe trabalhadora que defendem uma transformação estrutural da sociedade reduziram seu contato com as necessidades do povo a momentos pontais de agitação. Uma panfletagem aqui, uma atividade cultural ali... Ações importantes, mas insuficientes para construir a confiança necessária. Apesar de praticamente todas diagnosticarem a ausência do Trabalho de Base como uma das principais causas de seus declínios ou vulnerabilidades, poucas e raras são as vezes que ele acontece. Por qual razão? Carência de planejamento, de disponibilidade? Ou será que o que nos falta mesmo é coragem?

         Já seu Raimundo, daquele dia em diante, não perdeu mais nenhuma atividade. Na comunidade, ele ganhou novo sobrenome: Coragem. Raimundo Coragem. Coragem, não por ter participado da heroica resistência contra jagunços armados, como viria a ocorrer dias depois. Coragem por ter tido a coragem de falar a verdade.

domingo, 8 de setembro de 2024

DO QUE NOS ACUSAM OS SENHORES PROPRIETÁRIOS. O QUE DIZEMOS NÓS, TRABALHADORES


   Tomamos conhecimento de um documento emitido pela família proprietária da fazenda Baquit ao senhor juiz da comarca de Jaguaruana-CE. Em linguagem bastante impositiva, dando ordens como se fossem patrões do judiciário, os autores exigem o imediato despejo das famílias da Ocupação Gregório Bezerra II.

   Eles dizem que transitamos na fazenda e entramos em “áreas produtivas”. Perguntamos: A que produtividade mesmo os senhores se referem: a de calangos ou a de ferrugens, que corroem a estrutura há tempos abandonada, como comprovam vídeos por nós apresentados?

   Senhores, não estamos construindo “barracos”, como alegam. Reiniciamos foi o processo de edificação de nossas casas, antes interrompido pela chegada de jagunços encapuzados e armados, que nos ameaçaram e ameaçam, os senhores sabem bem a mando de quem. Construímos casas porque aqui é nosso lar. Os senhores enxergam a terra como fonte de lucro, a devastam, envenenam, depois a desprezam, por isso longe de morarem nela. Para nós, ela é fonte de vida, de dignidade. A gente cuida dela enquanto ela cuida da gente. Lembram das frutas livres de agrotóxicos que os senhores compram nos supermercados para alimentarem suas famílias? Somos nós quem as produzimos.

   No documento, os senhores também nos acusam de “arregimentar” pessoas. Lhes perguntamos: Existe força de atração maior do que as cercas da opressão que os senhores nos impõem? São as suas cercas que fazem chegar em todas as nossas reuniões famílias novatas querendo ingressar na luta pela terra e por dignidade. De onde elas surgem? Por que elas aparecem? E olha que não está sendo nada fácil. Os 50 jagunços enviados na madrugada do dia 26 não derramaram sangue por obra de milagre. Quem gostaria de ver seu filho se tremendo ou desmaiando ante todo aquele terror? Ver trabalhadores de mãos calejadas sendo postos de joelhos, humilhados, também não é nada fácil para quem o sangue corre nas veias. Mas ainda assim chegam novas famílias todos os dias, “arregimentadas”, como dizem os senhores, pela lei maior da necessidade.

   “Arregimentadas” são outras tantas e muitas pessoas que, ao tomarem conhecimento do que estamos passando, começam a nos apoiar. Elas são de todo canto do Brasil. A verdade não conhece fronteiras, senhores. Todos os dias, todos!, recebemos visitas. São comunidades, sindicatos, estudantes, professores, padres, freiras e por aí vai. Fora as mensagens. Temos que estar com os celulares sempre de prontidão, porque a todo instante nossos amigos e amigas nos perguntam como estão as coisas. Sim, senhores, muitas destas pessoas, arregimentadas pela verdade e por um sentimento genuíno de justiça, estarão com a gente até o final, custe o que custar.

   Em outro trecho do documento os senhores chamam nossa ocupação de “esbulho”. Leiam bem: aceitem ou não, OCUPAR É DIREITO NOSSO! A grande propriedade que não cumpre sua função social deve ser desapropriada para fins de Reforma Agrária. Tá na Constituição Federal! Esbulho é quando alguém tenta se beneficiar em proveito próprio, quando invade para enriquecer. Neste caso, o nome é “invasão” mesmo! Invasão que sofremos continuadamente desde abril de 1500. Invasão como a dos jagunços, uma criminosa e covarde ilegalidade para tentar burlar e impedir a garantia de nosso direito constitucional. 

   Os senhores invertem as coisas. Também pudera, nas suas cabeças o lucro está acima da vida. Mas pode ser diferente. Tomara um dia tudo ser diferente! Entre nós e os senhores existe uma coisa que nos impede de viver como irmãos e irmãs que somos. Essa coisa se chama propriedade privada! Ela foi implantada em todos os lugares, e é controlada por poucas mãos. É ela quem faz com que trabalhadores assim como nós, sem propriedade, se submetam por um mísero ganha-pão ao papel criminoso e à chefia covarde de jagunços profissionais, na defesa de interesses opressores. Como disse uma de nossas crianças: “Jagunços, amanhã seu patrão fará contra vocês o que agora fazem contra a gente”. A propriedade é a causa da cegueira que leva os senhores a crerem que mais vale sangue inocente derramado do que tê-la em comunhão.

   Mas pode ser diferente. Tomara um dia tudo ser diferente! Da nossa parte, lutaremos até o fim para que isso aconteça.

  


Ocupação Gregório Bezerra II – OPA

Jaguaruana-CE, 06 de setembro de 2024