terça-feira, 30 de agosto de 2022

A FORÇA DE TOINHA

 


Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

    Dias atrás, fomos convidados pela Diocese de Brejo, no Maranhão, para participar de um seminário sobre agrotóxico. A região é tomada pelo agronegócio, como se costuma chamar o monstro capitalista que devasta a vida no campo, com impactos cancerígenos na cidade. De um lado a outro da estrada, o que se vê são cemitérios de florestas, túmulos profanados pelo assassino que se mantém impunemente em atividade à luz do dia.

    No seminário, me chamou bastante atenção o depoimento de Toinha. Acho que ela não chega a ter quarenta anos de idade. Pele levemente avermelhada, traços indígenas marcantes, a moradora de uma comunidade ilhada pelo agronegócio contou que o projeto do capital está matando sua família. O primeiro a apresentar sintomas mais sérios foi o filho mais novo. Com oito anos de idade, após uma pulverização aérea, a criança começou a transparecer severas crises alérgicas, com profundas ânsias de vômito e acentuada falta de ar. Foi ao hospital por mais de uma vez, até melhorar e voltar para casa, onde a expectativa por um novo ataque aéreo tira o sono de toda a comunidade.

    As torturas que sente na pele e na alma, Toinha bota pra fora, vomita-as, como cansou de fazer seu filhinho no hospital. Com a incrível firmeza de quem não teme o choro, ela prossegue: “Agora, os mesmos problemas começaram a aparecer no meu filho maior. E eu estou aqui, mas há alguns dias tive que fazer uma cirurgia, que levou quase meu fígado inteiro.”

    Ao fim da partilha, a sensação de impotência é visível em seu rosto, mas Toinha se mantém em pé, microfone à mão, encarando a plenária, que, como ela, padece dos mesmos males. Na sua situação, muitos de nós já teríamos metido um tiro na cabeça, mas Toinha permanece em pé. De onde vem esta força?

    O vulcão sufocado que habita as entranhas de seu ser, mais cedo ou mais tarde, explodirá. Contudo, o ardor da força da natureza de Toinha, se sozinho, por mais flamejante que seja, não evitará sua morte nem a de seus filhos.

    O voto também não resolverá seu problema. O agronegócio patroneia as candidaturas favoritas. Toinha, no entanto, não se deixa abater. Ela está grávida! Grávida de esperança, de vontade de lutar, ela quer parir uma transformação real em sua vida! Toinha reluta em aceitar o fim de sua comunidade, ela não quer ver seus filhos chorando de dor novamente, Toinha não quer morrer, ainda que, para isso, tenha que doar sua própria vida. Que razões outras teria para estar ali?

    Toinha, assim como a Diocese de Brejo já vem testemunhando, a OPA está disposta a enfrentar junta com você esse monstro capitalista. Nem à frente nem atrás, mas com você, lado a lado, até às últimas consequências. Até porque, para nós, a OPA nada mais é do que o encontro das Toinhas espalhadas mundo à fora, partilhando suas dores e alegrias, e, mais do que nunca, unidas, "avançando na luta contra o inimigo".

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

O MILAGRE DE LAMEIRO

 

Thales Emmanuel, militante da Organização Popular – OPA.

 

            Gracinha morava nas ruas da pequena cidade de Lameiro, no sertão nordestino. Era tida como alma perturbada, doida, atormentada por sete demônios. Na pele, as chagas se espalhavam qual pesticida ao vento. Cicatrizes diversas - algumas só meio fechadas -, lodo, lama entranhada, vermes. Um dia, por caridade, deram um banho em Gracinha e encontraram bichos até na vagina.

            De onde ela veio, quem são seus pais, seus avós, ninguém sabia. Gracinha não tinha história. Era apenas uma endemoniada ausente nas estatísticas.

Numa noite esquecida de Natal, ao atravessar a rua da Praça Central, ela, que vinha de lugar nenhum, foi atropelada pelo filho de um rico fazendeiro da região. Seu corpo, arremessado por mais de cinco metros, amassou gravemente o reluzente capô do automóvel. As pessoas pararam a festa para lamentar o prejuízo. “Doida cega! Não enxerga por onde anda?!”

Estatelada no chão, imóvel, Gracinha acompanhava a movimentação das luzes com olhos bambos, até ser jogada no dorso de uma carroça e levada ao hospital da cidade. Sorte dela que era Natal e o piedoso médico não demorou para examiná-la. Gracinha permaneceu calada do começo ao fim da consulta. Então, o doutor conferiu-lhe o diagnóstico: “Paciente portadora de mudez.” Gracinha era muda. Ninguém se dera conta por todos aqueles anos. “Bem que eu desconfiava”, “Realmente, ela nunca abriu a boca desde que chegou aqui”, comentou por uns dias a população da cidade.

O pedido de esmola sempre fora puramente gestual, com a cabeça baixa e a embalagem de Qualy vazia estendida na ponta dos dedos.

Quando a meninada soube do mutismo, começou a chamá-la de “doida-muda” e a brincar de tiro-ao-alvo com pedras de qualquer tipo e tamanho. Quem acertasse na doida-muda ganhava dez notas de carteiras de cigarro. Se ela gemesse, o valor da tacada subia pra cem. Apedrejada, Gracinha nem falava nem gemia.

A moradora sem teto mais antiga das redondezas dormiu na calçada da casa paroquial naquela noite. Com pedaços de papelão, forjou rapidamente uma cama. Em cima de um velho trapo enrolado, seu escudeiro fiel, descansou a cabeça.

Quando o padre Matias, recém-chegado à diocese, abriu a janela para o sol da manhã, deparou-se com Gracinha, já de pé, estendendo-lhe, de cabeça baixa, a embalagem de Qualy.

            “Oh, bom dia, senhora! Entre, venha tomar o café comigo”, disse carinhosamente arrastando seu sotaque irlandês.

            Gracinha nem agradeceu nem assentiu o convite. Apenas entrou.

            À mesa, o padre conversava de um jeito simples e sem cerimônia. O odor pútrefo de carne em decomposição que exalava do corpo da visitante incrivelmente parecia não chegar às suas narinas; ou, se chegava, as tocava de uma maneira absolutamente inimaginável. Da parte de Gracinha, não havia encabulamento nenhum, era só mastigação. Com o olhar invariavelmente virado para baixo, calada entrou, calada saiu.

Deste dia em diante, sempre que Gracinha dormia na calçada da casa paroquial, padre Matias, assim que abria a janela, a convidava para, juntos, quebrarem o jejum. Da parte dela, as mesmas maneiras: cabeça declinada e mastigação; calada entrava, calada saía.

Depois de botar para dentro um prato de cuscuz de arroz com leite, sua comida mais saborosa, numa dessas manhãs, Gracinha abriu a boca e, para espanto de seu amigo, falou:

“Deus potreja o sinhô.”

            O vigário se engasgou de quase morrer.

            “Meu Deus, você fala!”

            A pobre mulher admitiu com dois rápidos piscares de olhos.

            “Mas por que esconder isso por tanto tempo?”

            Meio sem jeito, Gracinha ergue a cabeça, não obstante não conseguisse fazer o mesmo com os olhos, e, com o tom de voz de quem se culpa pela maldição que carrega, responde:

“Era minha defesa.”

            E assim sucedeu o Milagre de Lameiro! A muda falou, e os que tinham ouvidos, puderam se curar da surdez.